Linha de Frente

É no hospital que as histórias de vida começam e terminam

Linha de Frente - Gerson Salvador
Gerson Salvador

O Natal do recém-nascido de Maria

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Dezembro, segundo ano da pandemia de coronavírus. Maria estava grávida de trinta e quatro semanas quando iniciou um quadro de febre de quase quarenta graus, coriza, alguma tosse e dor muscular difusa. No quarto dia após o princípio dos sintomas, surgiu um desconforto respiratório progressivo, após poucas horas ela foi levada para a emergência.

Na admissão, ela estava prostrada, em mau estado geral, apresentava os lábios azulados, e tinha intenso desconforto respiratório. Sonolenta, pressão baixa, frequências cardíaca e respiratória elevadas, com uso da musculatura acessória do tórax e pescoço para inspirar, saturação de oxigênio em setenta e quatro por cento.

Maria precisou de cateter central, drogas para elevar a pressão arterial, foi intubada e levada imediatamente para o centro obstétrico. Foi necessária uma cesariana de emergência, seu filho prematuro e sob efeito de sedativos que circulavam no sangue da mãe precisou também ser intubado na sala de parto. A partir de então, mãe e filho foram conduzidos para unidades de terapia intensiva - ela para UTI adulto, ele para a neonatal.

A fotografia expõe o tórax, a fralda e a mão de um bebê recém-nascido que envolve o dedo de uma mulher adulta, enquanto a outra mão da mulher o acaricia.
Bebê em UTI neonatal tem a mãozinha acariciada. - Patricia Araujo/Folha Imagem

Saiu o RT-PCR: não era Covid-19, era Influenza A. Mesmo diagnóstico de milhares de pessoas que procuravam atendimento em diversas unidades pela cidade e país afora. Todos os que já atendemos em epidemias de Influenza temos lembranças tristes de grávidas que morreram de gripe. A morte de uma mulher grávida é uma tragédia não apenas para a sua família, a perda de duas vidas também deixa feridas abertas no peito do médico e de toda a equipe assistencial, as minhas estão aqui escancaradas.

Maria passou a primeira noite na UTI em situação de extrema gravidade, o plantonista relatou um choque de difícil controle, disse que ela quase evoluiu para parada cardíaca devido à depressão do músculo cardíaco. Evoluir para parada cardíaca é contraditório e doloroso, mas é assim que falamos de eventos que se sucedem.

O RN de Maria, é assim que chamamos o bebê enquanto ainda não tem registro: recém-nascido de sua mãe, ficou estável, logo foi possível retirar o tubo endotraqueal antes do nascer do sol. Na manhã seguinte ele estava animadinho em sua incubadora, com peso e tamanho adequados para idade gestacional, sem maiores intercorrências.

O terceiro dia era véspera de Natal. Os fisioterapêutas deram boas notícias sobre a diminuição da necessidade de suporte ventilatório. Também foi possível retirar as drogas que mantinham a pressão arterial estável. Maria melhorou de todas as disfunções.

Quando Maria foi extubada, ainda algo confusa, ela colocou a mão na barriga e a sentiu vazia. A expressão de desespero virou um sorriso farto quando ouviu da enfermeira: seu bebê está bem!

Maria vive, e seu recém-nascido terá o melhor presente de Natal do mundo: uma mamãe.

A gente lembra as feridas que ainda ardem, mas faz um balanço e vale a vida.

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