Linha de Frente

É no hospital que as histórias de vida começam e terminam

Linha de Frente - Gerson Salvador
Gerson Salvador
Descrição de chapéu dia dos pais

O ocaso do pai da Estrela

Filha procura cuidado para pai com hemorragia intracraniana

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Árvore sem folhas, com galhos secos iluminada sob o céu noturno estrelado.
Árvore que remete à árvore da vida e o céu noturno estrelado. - Rafael Lefcadito

Chego ao plantão, sou notificado que durante o dia foram recebidas dezoito ambulâncias. Na entrada, pessoas aguardavam reavaliação por algumas horas, nas macas alguns se recuperam, outros agonizam, todos sofrem.

Estrela me vê passar, chama meu nome, aproxima-se tensa e declara embargada: se você disser que vai abrir a cabeça de meu pai, eu vou embora pra ele morrer em paz em casa.

Homem de 92 anos preservava alguma independência até um mês atrás, quando evolui com alteração comportamental, sonolento, confuso, acamado, dependente para tudo. Estrela tinha dificuldades até mesmo para movimentar o corpo de Vitório, com seus quase cem quilos. Precisou de suporte profissional e, felizmente, contava com algumas economias que lhe permitiram arcar com uma instituição que lhe custava a renda mensal.

O médico dono da clínica pediu alguns exames, entre eles uma tomografia de crânio que revelou hematomas subdurais, coleções de sangue que comprimem o cérebro e comprometem as suas funções. Do laboratório, o radiologista orientou a busca imediata de um pronto-socorro.

Quando cheguei, Vitório já aguardava vaga para avaliação de neurocirurgião em outro hospital. Mais uma vida na fila da central de regulação.

Encontro Estrela, ela me diz que tem um irmão, Vitorinho. Peço para chamá-lo e nos reunimos os três.

Vitorinho, com seus cabelos grisalhos, grande estatura e voz grave, questiona para que eu responda, em nome de todos os médicos, porque o pai dele se encontrava daquela maneira, porque o diagnóstico não foi feito antes, o que seria feito a partir de então. Disserto que a doença tinha indicação cirúrgica, mas era preciso conversarmos para definição do que fazer com a pessoa que porta a doença. Estrela já tinha dito que não admitia essa possibilidade. Ao ser informada que o quadro poderia ter alguma melhora, ela diz com toda a firmeza: não sei se tem chance de meu pai voltar a ser o que era, acho que não, mas eu mesma não volto a ser quem eu fui. Eu não quero ver meu pai passar por isso nunca mais! Ele prezava muito por ser independente, muito.

Vitorinho por motivos distintos, era espiritualizado e não desejava um desencarne sofrido para seu pai, como referiu, também se posiciona contra o procedimento.

Eu falo aos filhos sobre o livro Mortais (Companhia das Letras, 2015), de Atul Gawande, onde o médico americano narra a história da morte de seu avô centenário na Índia em sua própria cama, cercado pela família, após um traumatismo craniano e critica intervenções médicas que podem agregar sofrimento às pessoas em seus finais de vida. A decisão sobre a intervenção depende dos valores das pessoas, nesse caso, dos filhos já que Vitório não pode se expressar. Em acordo com o posicionamento deles, suspendo a solicitação de avaliação neurocirúrgica.

Estrela decide levar o pai para morrer em paz no tempo que ele tivesse na clínica de longa permanência. Faço um relatório direcionado ao médico assistente com diagnóstico e com proposta de cuidados paliativos proporcionais.

O médico dono da clínica entra em contato com Estrela, ele não aceita Vitório naquelas condições. Só após a cirurgia.

Estrela pede uma maca para acolher o pai. O que se passa com Vitório não é infrequente, infelizmente. Muitas clínicas privadas não aceitam cuidar de pacientes nos seus momentos derradeiros, não compreendo uma casa que se destina à permanência de pessoas muito dependentes, não cuidar delas em situação tão delicada e amenizar o sofrimento dos pacientes e familiares.

Pela manhã, Estela procura o dono da clínica e relata o seu desamparo. Desamparo. Após contestações e com muitos senões, o médico admite o retorno de Vitório.

Após alguns dias, o pai da Estrela retorna ao Cosmos. Ela entra em contato comigo e agradece, serena. Vitório partiu de uma cama quentinha, sem ranger dentes, ao lado do neto que não via há anos e dos filhos. Nós ficamos com a lição de casa na medicina de redirecionar nossos esforços ao cuidado e ao respeito pelo outro, até o fim.

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