Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu

Em 2022, continuo escrevendo para não me acostumar à morte

Escrever sobre morte me mostrou a urgência de vida

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São Paulo

A menos de vinte e quatro horas de um imprevisível 2022, continuo no mesmo esforço: não me acostumar à morte.

A morte por falta de ar em Manaus. A contínua e desesperadora morte de meninos negros. De mulheres negras atravessando a rua. De referências. Pela Covid-19. Da fome. Das chuvas. Da falta outra vez.

Confesso: ao longo de 2021, senti muito medo de ser leviana em meus textos. Medo de arredondar todas as mortes a uma, igualá-las como se fossem só mais uma.

Tive medo de escrever e me repetir. De usar as mesmas palavras de ordem para problemas tão velhos, deixados ano a ano, como uma dívida não paga, exorbitando em juros.

Eu continuo com medo, porque escrever por escrever, só para aliviar a minha dor, ou então surfar na grande onda dos trendings topics, me parece mais uma massagem no ego do que qualquer outra coisa.

Mas não dizer palavra sobre as tantas evitáveis mortes de nosso país também é não se posicionar. E neutralidade em tempos de crise é tomar partido.

Mesmo com medo, escrevi. Não foram grandes ensaios ou metáforas sintéticas onde você, leitor, você, leitora, pudesse acomodar sua dor.

Mas foram palavras que buscaram nos lembrar que, mesmo na urgência de vida, podemos falar dessas coisas de dentro, desse trauma profundo cravado na gente em forma de luto.

Entendi que a própria escrita tem algo entre viver e morrer. Um hiato entre a palavra dita e aquela que gostaríamos de dizer.

Depois de escrever, um buraco extenso se abria diante de mim. É como se minhas palavras não conseguissem alcançar minha dor diante do tiro que encontra uma jovem passeando na rua.

Hashtags. Mil delas subindo e descendo as timelines. No outro dia, quem lembra? Quem realmente se importa?

Morre-se um pouco cada vez que escrevemos. Morre-se já ali, na entrevista, quando o ouvido apurado para para chorar junto. Escrever é quase sempre morrer um pouco. Deixar para um outro, que não conheço, alguma palavra que materialize o fim aqui dentro de mim.

Escrever sobre morte foi a forma que encontrei de diluir o que sentia. De levar meu luto para uma mesa de bar sem medo do julgamento.

Estar aqui com vocês é sempre um desafio, mas também minha tentativa mais honesta de tratar com coragem a morte que, de algum modo, me mostrou a urgência de vida.

Vou chegando em 2022 me esforçando para não me acostumar à morte, mas fazendo desse assunto um costume.

Jéssica Moreira

Jéssica Moreira é escritora e jornalista. Coautora do Blog Morte Sem Tabu e Cofundadora do Nós, mulheres da periferia

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