Elza Soares morreu na tarde da última quinta-feira, 20 de janeiro. Dia de São Sebastião para quem é de São Sebastião, o santo que guerreia. Dia de Oxossi pra quem é de Oxossi. Orixá da caça e da fartura, também guerreiro.
Pra mim, que tenho São Sebastião na entrada e na saída do quintal, protegendo quem chega e quem parte, a morte de Elza coincide com uma data importante no calendário da infância. Todo dia 20 era tempo de visitar a igreja do santo e levar as moedas que o pai havia juntado ao longo de todo o ano.
Neste dia 20, não fui à missa de São Sebastião, mas assisti de longe e com saudade e tristeza a morte de uma mulher que não se curvou à guerra. Eu não chamaria Elza de guerreira nesse estereótipo que insistem em imprimir às mulheres negras. Mas diria que Elza, com uma arma muito mais estratégica, não se esquivou de nenhuma luta.
A mulher do fim do mundo, nascida na Favela da Moça Bonita, onde hoje é a Favela do Vintém, no Rio de Janeiro, teve uma infância marcada por vários obstáculos que ainda são presentes na vida de muitas meninas negras. Mas Elza também encontrava frestas nas brincadeiras na rua. Desde cedo aprendeu a viver com alegria, independente das feridas.
Casou-se ainda criança, aos 13 anos, praticamente forçada pelo pai. Sofreu violência sexual e doméstica do então marido e chegou a morrer algumas vezes: na morte dos filhos no Planeta Fome, este mesmo que continua matando milhões em meio à pandemia. No sequestro da filha. No machismo de uma sociedade inteira que não aceita ver uma mulher negra amando e sendo amada. Nos altos e baixos de uma carreira no país onde a carne mais barata do mercado ainda, e infelizmente, é a carne negra.
Em face a tantas mortes, ela viveu. "Elza não se perdeu de si mesma", disse a apresentadora do Metrópolis, Didi Couto. A frase de Didi me tocou profundamente. Você foi embora, Elza, na semana em que esta Folha, que agora relembra seus feitos, autorizou a publicação de um artigo que defende o racismo reverso.
Meus colegas de casa, como Silvio Almeida, já explicaram muito bem as razões que fazem desse argumento algo inaceitável. Mas seguindo o conselho de Didi, referindo-se à Elza, não vou me perder de mim mesma e quero continuar, aqui, glorificando em pé a mulher que Elza não só foi, mas continuará sendo.
Não tive a chance de ir até o seu velório no Rio de Janeiro. Mas, daqui da periferia de São Paulo, eu sinto sua morte como a de uma pessoa próxima. Você, pessoa enlutada, sabe bem o que é isso: aquela hora que você voltamos do cemitério e pensamos: o que fazer? Como se reinventar? Como colher as histórias para montar uma memória? Não para os outros, mas para a gente mesmo.
Resolvi ouvir algumas de suas músicas enquanto escrevia esse texto. Outro dia eu entrevistei a Leci Brandão e ela contou que, antes de ser deputada, revisitou todas as músicas que havia cantado. Isso porque a música cantada ou interpretada por uma mulher negra é por si só uma canção política.
Eu poderia citar muitos de seus versos e criar uma análise profunda do que eles simbolizam. São tantos, né?
Mas o que fica pra mim é que você, até na hora de sua partida, Elza, nos fez tomar o rumo, não nos perdemos de nós mesmas, seguirmos essa linha que bate no coração e que pulsa a gente a ser do tamanho que somos, mesmo com tantas mortes, simbólicas ou físicas.
Está aí sua estratégica guerra, muito bem dita por Didi Couto: apagar os finais previstos para uma mulher negra brasileira. E apagou esses finais no seu corpo e voz, sendo e existindo em alto e bom, aliás, incrível som. Na voz curativa, tanto para si, quanto para tantas de nós.
Essa sua voz, Elza, capaz de estilhaçar as pilastras dessa sociedade racista, machista, classista, foi capaz de em uma semana cheia de holofotes a homens brancos que acreditam em racismo reverso, lembrar que Deus há de ser uma mulher negra. Deus há de ser Elza Soares.
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