Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira

O legado de bell hooks: quebrar a ideia colonizadora do amor

Ela nos impulsionou a pegar as rédeas e construir um caminho mais íntegro

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mulher negra

A escritora e ativista americana bell hooks, autora de 'Ensinando a Transgredir', terceiro volume da Coleção Folha - Os Pensadores Reprodução

por Fabiola Simmel e Mirian Fonseca*

Hoje queremos falar de amor, despedidas e silêncios. Falar do vazio que fica quando alguém que amamos vai embora. Do cheiro das coisas, do atropelo da dor, do não sentir, não amar, amar e se despedir. Queremos falar dela, que tanto nos falou de amor.

bell hooks se despediu no dia 15 de dezembro de 2021, aos 69 anos, ao lado de sua família e amigos, sendo amada e acolhida.

Para nós, mulheres negras, essa morte, entre as várias notas de falecimentos do ano, entrou na lista de uma das mais dolorosas de aceitar. A mulher que mais nos ensinou sobre o amor na prática, partiu. Receber a notícia nos deixou em estado de suspensão e silêncio. Difícil encarar sua perda, porque não teremos mais novas escritas ou poesias.

Perdemos uma das maiores intelectuais negras do mundo, que já está eternizada em suas produções e contribuições.

Lembramos como se fosse hoje a primeira vez que tivemos contato com a sua obra através do texto; ‘’Vivendo de amor’’, e o quanto precisávamos desse encontro. Ela nos impulsionou a voltar para o trilho, a pegar as rédeas e construir um caminho mais íntegro.

hooks nos mostrou que o amor cura e que nossa recuperação está no ato e na arte de amar. Colocou o dedo em nossas feridas e mostrou a importância de saber nomear o que sentimos, para não aceitar qualquer coisa como amor.

Em "Olhares Negros: raça e representação", ela nos diz:

"Sem uma forma de nomear a nossa dor, nós também não temos palavras para articular nosso prazer. De fato, uma tarefa fundamental dos pensadores negros críticos tem sido a luta para romper com os modelos hegemônicos de ver, pensar e ser que bloqueiam nossa capacidade de nos vermos em outra perspectiva, nos imaginarmos, nos descrevermos e nos inventarmos de modos que sejam libertadores. Sem isso, como poderemos desafiar e convidar os aliados não negros e os amigos a ousar olhar para nós de jeitos diferentes, a ousar quebrar sua perspectiva colonizadora?"

É sempre bom dizer que devemos saber o que queremos, pois não é qualquer coisa que nos serve. Em uma sociedade exaurida pelas urgências, estamos cansadas dos jogos de poder dentro das relações, tão incentivados pelo amor romântico. Talvez seja essa a tal insatisfação, a falta de esperança da juventude.

A banalização desenfreada no termo faz com que tudo seja considerado amor, afinal quantas pessoas você se refere no seu cotidiano por "amor", "meu amor".

O amor não tem nada a ver com sofrimento, mas é importante pensar que não se trata de algo instantâneo. Construímos e planejamos nossa carreira, mas quando se trata de relacionamento acreditamos que só temos que pensar em planejamento familiar. Quando nos deparamos com a rotina, todo o sentimento se esvai como um dente de leão ao vento.

Em seu livro "Tudo sobre o amor: novas perspectivas'', ela apresenta as dimensões para construção de uma ética amorosa e todas elas precisam ser colocadas em ação, a saber: "cuidado, compromisso, confiança, responsabilidade, respeito e conhecimento". Assim, percebemos que leva tempo para desenvolver cada uma delas, tão logo o amor também.

Não aprendemos como amar e buscamos a vida inteira tentar encontrar seu significado. Mas hooks apontou um caminho político e real para nos curarmos: ter fé de que o amor existe, ou melhor, que pode ser construído, nos colocando no rumo da revolução política e social.

Em ambiente familiar, pouco recordamos de conversas que falam de como o amor acompanha nossas relações. Na maioria das vezes, falamos de estrutura de poder, quem manda ou desmanda na relação. O incentivo a fragilizar a confiança no outro e o "preparar para o casamento" diz mais sobre os afazeres domésticos do que, de fato, como amar. O "como" dentro dessas relações é sempre uma incógnita.

Para além do nosso cotidiano, atravessado por marcadores de sofrimento, podemos transcender. Ter o poder de amar. De estabelecer uma relação amorosa que nos faça sermos nós mesmas.

Quando estamos em um círculo de mulheres negras, sentimos que estamos em casa, de maneira que não precisamos ficar na defensiva, de sermos julgadas pelos dois dilemas que mais nos atravessam: o racismo e o machismo. Não romantizando essa relação, até porque estamos sendo moldados a todo momento, mas nesses espaços podemos experimentar algo para além da repressão.

hooks nos apresenta uma nova forma de construir relações com nossos pares. Decerto, temos muitas dores eminentes, mas todas elas podem ser curadas pelo ato de amar. E, aqui, é bom reforçar que amar é uma ação e não tem nada a ver com a idealização que tanto nos é apresentada.

O amor está presente no prazer de nossas mães ao preparar nosso café da manhã, mesmo sabendo que já estamos bem grandinhas para precisar disso. Está nas mensagens rápidas de bom dia, nas atualizações e no compartilhamento de boas notícias, nas visitas inesperadas, nos cuidados. Ou até mesmo quando aquela pessoa que gosta de você arranja um tempinho em meio à agenda apertada da semana. Essas são algumas formas de dizer "estou presente", "nossa relação é importante".

"Amar faz isso. O amor nos empodera para viver plenamente e morrer bem. Então, a morte se torna não o fim da vida, mas uma parte dela."

Logo, encarando sua morte, fazemos o mesmo caminho que ela, quando se deparou com as mortes de pessoas ao seu redor. Ela dizia que, conforme foram acontecendo as perdas, mais ela foi se aproximando do amor.

Seu legado fica. Vem com um apelo à ação. AMEM agora. Amem cada momento do seu viver, acredite nesse amor interno que nos coloca no caminho do nosso propósito. Que com toda sua trajetória possamos reviver a importância de ter fé no amor. Fé numa construção honesta e realista do amor.

A partir de então, queremos falar e viver o AMOR.

*Fabiola Simmel é artista soteropolitana que desenvolve trabalhos como atriz, performer, pesquisadora e educadora teatral. Atualmente é licencianda em Teatro pela UFBA e faz parte dos grupos: Galinhota Coletivo, Coletivo Fraude Pura e CarNegra.

*Mirian Fonseca é baiana, laurofreitense e artista colaboradora do Coato Coletivo, estudante de Artes Cênicas- Habilitação em Direção Teatral na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, Produtora e Mobilizadora de processos criativos e comunidades. Possui ampla experiência com mobilização comunitária em comunidades que vivenciam conflitos territoriais, captação e mobilização de recursos e processos criativos colaborativos. Atualmente dedica-se a sua pesquisa nas artes cênicas investigando o teatro-documentário, territorialidades e poéticas tecnológicas para cena.

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