Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu
Cynthia Araújo

Antinazismo à brasileira

Quando genocídios são legalizados

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Eu tinha uns seis anos. Alguém leu para mim a história da Lalá, que ia para a Alemanha. Coloquei umas roupinhas dentro de uma mochila e insisti que ia com a Lalá. "Amanhã a gente vê isso, hoje já está tarde" ou alguma frase parecida foi o que finalmente me disseram e a mochila ficou lá pendurada na maçaneta da porta.

Esse amanhã nunca chegou, mas a curiosidade sobre a Alemanha me acompanhou a vida inteira. Juntei a isso o interesse que sempre tive pelas aulas de história e foi natural que minha pesquisa de mestrado fosse sobre o nazismo.

Eu já tinha ido ao Museu do Holocausto em Washington, nos Estados Unidos, duas vezes. Cada vez que vai, você recebe os dados de uma vítima em uma réplica de passaporte. Eu só tinha dezoito anos em 2002, mas lembro de ter achado aquilo genial. É impossível ficar alheio, é impossível não se identificar com a dor profunda de alguém cuja história está ali nas suas mãos.

Eu saí da primeira visita com duas frases na cabeça: "never forget" (nunca esquecer) e "remember the children" (lembrem-se das crianças). A exibição permanente "Daniel’s Story" mostra a experiência de uma família durante o holocausto pelo olhar de uma criança. Eu voltaria ao museu cinco anos depois dizendo ao meu hoje marido que esse tinha sido o maior impacto daquele lugar sobre mim.

Quando lemos histórias de guerra, pensamos muito sobre inimigos, exércitos, armas e destruição. Mas quantas vezes você já pensou que os alemães assassinaram cerca de um milhão e meio de crianças, entre judeus (um milhão), ciganos e crianças com deficiências físicas ou mentais? Crianças assassinadas deliberadamente, por fuzilamento, em câmaras de gás. Executadas por características que lhe eram intrínsecas, que não podiam ser mudadas. Nada havia que pudesse ser feito para salvá-las.

Não para salvá-las dos horrores da guerra, que dizima vítimas inocentes como efeito colateral. Para salvá-las de uma ideia. Uma ideia segundo a qual suas vidas não deveriam existir.

Só fui pisar na Alemanha pela primeira vez em 2011, para fazer algumas aulas de alemão. "Finalmente vai encontrar a Lalá", disse a minha mãe. Fiquei duas semanas em Berlim. Passei muitas horas no Topographie des Terrors, um museu-memorial que fica na extinta sede da Gestapo, a polícia secreta nazista, um dos núcleos do terror do regime. Não é tão completo e educativo como o Museu do Holocausto, mas estar ali é importante, porque faz com que localizemos os eventos no mundo.

Eu estava no meio do mestrado e entender a dimensão do horror era necessário para entender a minha hipótese. Minha investigação era se o Direito pode ou não ter um conteúdo extremamente injusto. Se o Direito pode permitir, por exemplo, a criação de um partido nazista. Em 2011, eu escutava que minha pesquisa não fazia sentido. "Argumentação defasada em um mundo resolvido". Obsoleta, inútil.

Quem dera.

Hart, um dos mais importantes teóricos do Direito, acreditava ser melhor que o Direito possa ter um conteúdo extremamente injusto para que possamos continuar avaliando-o moralmente. Se já sabemos de antemão que uma norma não pode ter um conteúdo extremamente injusto, conseguiremos identificar quando ela tiver?

Vi algumas pessoas defendendo a mesma coisa nos últimos dias. "Melhor que seja explícito para sabermos com o que estamos lidando".

Coloquei um pequeno resumo de alguns dos atos que foram editados durante o regime nazista na minha rede social e fiquei convencida de que a maior parte das pessoas não os conhece. Por isso tomo a liberdade de repetir (todas as referências estão em: Nazismo e o conceito de nao positivismo jurídico, Juruá, 2015).

As "Leis de Nuremberg" definiram os judeus, alemães e uma categoria intermediária miscigenada, servindo de base para a subsequente legislação antissemita. Pelo menos cento e vinte e uma leis, decretos e outros atos normativos, editados entre 1935 e 1939, destruíram a possibilidade de continuação da vida judaica na Alemanha.

O "Primeiro Decreto da Lei da Cidadania do Reich" foi editado em 14 novembro de 1935 e trazia disposições como "um judeu não pode ser um cidadão do Reich" e "ele não tem o direito de votar em assuntos políticos; ele não pode ocupar cargos públicos".

Em junho de 1935, foram acrescidos ao Código Penal artigos que permitiam punições de acordo com o que poderia ser chamado de "sentimento sólido do povo", o que na prática permitia a punição de qualquer ato independentemente da sua tipificação como crime.

Em 12 de novembro de 1938, foi editado o "Decreto para eliminar os judeus da vida econômica alemã" e, em 23 de novembro de 1938 e 14 de dezembro de 1938, respectivamente, o "decreto para implementar o Decreto referente à eliminação dos judeus da vida econômica alemã" e o "Segundo Decreto de implementação do Decreto para eliminar os judeus da vida econômica alemã". Em 28 de novembro de 1938, foi editado o ato pelo qual o Ministério do Interior do Reich restringia a liberdade de ir e vir dos judeus e, no dia seguinte, o ato pelo qual se restringiu sua possibilidade de comunicação.

Diversos atos normativos expressamente se diziam "normas sobre medidas contra os judeus" e restringiam, até a total eliminação, todos os direitos de cidadãos dos judeus, inclusive, de frequentar lugares públicos, exercer qualquer atividade econômica, estudar e até adquirir itens de primeira necessidade ou ter qualquer posse, inclusive de seus negócios e residências.

Normas exigiam a identificação dos judeus e de tudo que lhes pertencia, com o manifesto propósito de facilitar o seu reconhecimento para posterior extermínio e confisco.

Como se sabe, os judeus não foram as únicas vítimas do Estado nazista. Em 1933, editou-se a lei para a "prevenção da descendência com doenças hereditárias", que determinava que qualquer pessoa com uma doença hereditária ali prevista, bem como alcoólatras crônicos, seriam esterilizados.

Os prisioneiros de guerra, representantes da resistência, grupos religiosos, homossexuais e chamados associais e ciganos, dentre outros, completam o grupo de demais perseguidos pelo nazismo e sua ideologia de "limpeza" da "raça humana".

Esse é só um pequeno resumo para mostrar que não, não é verdade que deixar que algo seja explícito para saber com o que estamos lidando nos ajuda. Conhecemos as consequências. Conhecemos a história. O Direito não só não pode permitir a criação de um partido nazista, como não pode permitir que alguém impunemente defenda essa ideia. O nazismo não é uma forma de pensar a sociedade, de gerir o Estado. O nazismo é uma ideologia de morte para uma parte da sociedade. Um projeto de tortura e execução.

É por isso que fala uma grande bobagem quem alega que mesmo destino que o nazismo deveria ter o comunismo. O capitalismo mata também, todos os dias. A desigualdade absurda que aceitamos sem resistir leva à morte milhões de pessoas em um mundo farto de recursos e alimentos. Nem por isso falamos que ele é inconstitucional. A base de valores do comunismo é perfeitamente legítima. O que muitas vezes se fez em nome dele é que é uma outra história.

Eu poderia terminar esse texto aqui, mas eu ainda não disse o principal motivo que me leva a escrevê-lo.

Na minha dissertação de mestrado, escrevo sobre a punição dos responsáveis pelo regime nazista, seus aliados e até aquelas pessoas que apenas obedeceram a legislação que vigia à época. E escrevo sobre a argumentação que levou aos julgamentos de Nuremberg, em que o direito nazista foi afastado e outro foi instituído para que aqueles crimes pudessem ser julgados. A razão instituída: entendeu-se que ninguém na década de 1930 poderia conceber, racionalmente, que pessoas pudessem ser mortas por suas origens, por sua raça, por elementos indissociáveis do seu ser. Isso tornaria o nazismo diferente, por exemplo, da escravidão, supostamente amparada na razão da época.

Sabemos hoje que essa "razão da época" também não tinha nada de racional, especialmente quando falamos da escravidão moderna. Sabemos de sua criação artificial para a manutenção de relações de poder, mas não é sobre isso que quero falar.

Quero falar sobre o hoje. Por que a apologia ao nazismo gera muito mais comoção que a negação do racismo? A negação do racismo tem matado um jovem negro a cada vinte e três minutos. A negação do racismo tem perpetuado relações que fazem com que pessoas não tenham acesso à educação, saúde. Elas não têm direito de ir e vir sem correr o risco de serem mortas, porque alguém as confundiu com o perigo, porque se achou estranho que uma pessoa de sua cor estivesse dentro de um automóvel caro.

É por isso que escrevo. Este texto é para perguntar por que nós, brasileiros, ainda nos sensibilizamos mais com o nazismo do que com o racismo, do que com o resultado de séculos de escravização negra neste país, o último a acabar com ela no mundo? E não pergunto isso para diminuir a indignação perante falas pró-nazismo. Muito pelo contrário, fiz uma pesquisa inteira para ajudar a argumentá-la.

Mas se a sua indignação com a apologia ou a aceitação do nazismo não existe perante o racismo e a negação da sua ocorrência, então você não entendeu por que combatemos o nazismo. Você não entendeu que o Estado existe para preservar as existências e dignidades de todas as pessoas – e não de apenas uma parte delas.

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