Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Cynthia Araújo

Petrópolis: tragédia na minha cidade natal

O medo da morte dos outros causa dor, o medo da morte dos nossos é dilacerante

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- Ana, a verdade é que tá que nem 88.

Enquanto assisto às imagens de destruição na televisão, escuto o áudio que a tia Aurora acabou de enviar para minha mãe.

Em 1988, mais de cem pessoas morreram na chamada "enchente de 88", em Petrópolis. Escuto a história desde pequena. Meu pai, que trabalhava no Rio, não conseguiu voltar para casa. Em uma época que não havia celular, minha mãe passou horas sem saber onde ele estava. Se estava vivo. Eu tinha quatro anos.

Quem nasce em Petrópolis se acostuma com muita água desde cedo. Deve ser por isso que sempre gostei de galochas, não há nada pior do que pés molhados. Minha primeira reação quando meu marido disse que estava vendo imagens de enchente na cidade foi não me impressionar e dizer que "deve ser na Coronel Veiga". Quando eu era criança, passávamos os natais na casa da tia Aurora, na rua Coronel Veiga. Todo ano era a mesma coisa: comer, abrir os presentes e esperar a rua desalagar para voltar para casa, no bairro Castelânea.

Um dos vídeos que circulam na Internet mostram um mini tsunami no Castelânea, mas não consigo identificar onde é. Não consigo encontrar nada familiar. Não é nada parecido com as águas que já vi em Petrópolis, incontáveis vezes.

- Já conseguiu falar com a Clara? E com o Fabinho? O João tá bem?

Meu pai, que acaba de chegar, começa um checklist interminável. Já mandei mensagens nos grupos da família, mas é difícil lembrar todo mundo. Enquanto me angustio com as imagens de crianças saindo de uma escola sob a terra, angustio-me ainda mais vendo a ansiedade da minha mãe. Três AVCs por questões emocionais produzem um estado permanente de alerta. O medo da morte dos outros causa dor, mas o medo da morte dos nossos é dilacerante.

No início, a televisão confirmava seis vítimas pelas águas de Petrópolis. Mas já havia mais corpos do que isso na rua, só em um dos pontos de alagamento. Acompanhar uma tragédia quase em tempo real em um lugar com o qual você tem muitos vínculos afetivos causa sentimentos estranhos.

Quarenta ocorrências, oitenta ocorrências, vou dormir. Quando acordo já são duzentas e três. O número de mortes subiu para vinte e quatro. Sabíamos que subiria mais, muito mais. Ao tempo da publicação deste texto, passamos de cem.

No twitter, o assunto é o primeiro do momento. Relatos pessoais, ofertas de ajuda e dezenas de textos sobre omissão do poder público e crise ambiental e climática. "Todo ano é a mesma coisa", "a natureza está nos avisando".

Não é a mesma coisa. Tá que nem 88, disse a minha tia. Talvez você também se lembre de 2011, a maior catástrofe climática do país.

Não consigo julgar as causas agora. Dois dias atrás, eu estava com meu marido e minha filha de oito meses andando pelos lugares que agora estão embaixo d’água. Vejo as pessoas em cima dos carros e me pergunto se alguma mãe teve que tirar seu bebê às pressas da cadeirinha. Acho que nunca mais sairei com Beatriz na chuva. Mesmo de galochas.

Egoísta pensar no que poderia ter sido conosco e com os nossos quando nada aconteceu? É possível se isolar desse sentimento e apenas ser solidário com as milhares de pessoas que estão procurando informações sobre seus entes desaparecidos?

Não sei. Sinto um luto coletivo pela minha cidade, minhas memórias, minha família e por todas as pessoas que nascem ou vivem ali também.

Alguns amigos me mandam mensagens perguntando se estamos bem. Respondo que sim, buscando notícias da família. Por enquanto perdas materiais, um carro que se foi.

Grandes tragédias fazem pequenas tragédias parecerem ainda menores. Perder tudo, ver sua casa desmoronar, não ter nem onde se abrigar, mas é como se você precisasse ser grato, porque afinal continuou vivo, ninguém da família morreu.

E quem morreu precisa ainda dividir a atenção com todos os outros mortos. Grandes tragédias tiram o protagonismo da própria morte. Já me peguei pensando que quando morrer, quero morrer sozinha, sem ter que disputar o espaço da minha história e o luto dos meus com outros tantos.

Egoísmo. Não é sobre você, respondo para mim mesma. Pessoas estão correndo para o IML, enquanto posso me dar ao luxo de me sentar ao computador e escrever este texto, uma espécie de desabafo pelo sentimento que me toma enquanto não consigo parar de buscar notícias, enquanto observo se a ansiedade da minha mãe está aumentando e demanda medicação, enquanto olho para minha filha brincando no chão e penso na mãe que está procurando pela criança de dois anos, desaparecida desde a queda de uma barreira.

Não é um texto jornalístico, informativo, sobre a estrutura de uma cidade cercada de montanhas, com casas improvisadas nos morros e décadas de descaso, apesar do pagamento de laudêmio para, pasmem, a "família imperial". É só o texto de uma petropolitana. É sobre mim também. ​

Saiba como ajudar as vítimas de Petrópolis

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