Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Mente

Se luto é tabu, imagina o luto nas periferias

As circunstâncias sociais, econômicas e territoriais não permitem viver o luto

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Vista do bairro de Perus, na zona noroeste de São Paulo

Vista do bairro de Perus, na zona noroeste de São Paulo Léu Britto/Agência Mural

São Paulo

Há alguns dias o criador do Movimento Infinito, Tom Almeida, me convidou para dar uma palestra sobre "A morte e o luto para a população periférica". A ideia é trazer as minhas percepções enquanto moradora e jornalista que cobre as regiões periféricas.

A síndrome de impostora que existe em mim titubeou ao convite. Afinal, não sou uma especialista. Mas os últimos dias e pautas ligadas à morte nas periferias me convenceram de quão importante é falar sobre este tema com a lupa territorial, de classe, raça e gênero.

A palestra acontece nesta quarta (6) e mais de 300 pessoas se inscreveram para o encontro online, promovido pelo projeto Inspira, do Sesc Pompeia. O interesse mostrou a mim mesma quão importante é trazer o tema para perto: no café da manhã, na roda de amigos e também na construção de políticas públicas.

Digo isso porque eu precisei trazer o luto bem para perto para conseguir vivenciá-lo. Não com menos dor, mas ao encará-lo de forma próxima, também pude aceitar e acomodar em mim sua existência, que, diferente do que dizem, não acaba ao longo do tempo. Não estou, eu sou uma pessoa enlutada.

Embora não haja uma receita de bolo, escrever sobre isso aqui no Morte sem Tabu foi uma das formas de acomodar os vários sentimentos que perpassam o luto. Além disso, as sessões de terapia e o apoio da própria família e de amizades próximas me auxiliaram muito. Trazer as memórias dessas pessoas amadas me ajuda a honrar o que foram em vida, e construir minha própria biografia.

Mas este discurso e a minha experiência pessoal não cabem para todas e todos, tampouco resume a experiência de luto nas periferias.

Antes de tudo, é importante dizer que o conceito de periferia ou, melhor, periferias é muito amplo. Por mais que possamos dizer sobre a questão geográfica – aquilo que está situado longe do centro – periferia também virou sinônimo daquilo que está apartado, à margem: de direitos, de serviços e até de olhares. Mas a periferia também é sinônimo de inventividade e de potência, uma vez que suas populações precisam se reinventar diariamente para sobreviver diante da omissão do Estado.

Assim como o conceito de periferia é múltiplo, o de luto também o é. Ainda mais porque o luto não é vivido de forma uniforme por todas as pessoas. Por isso, é sempre importante sermos cuidadosos ao indicar fórmulas para atravessar esse período da vida. Parto sempre dessa premissa para refletir e trazer minhas experiências, que também estão em constante construção.

O luto coletivo da periferia na pandemia

Muitas vezes, o luto não pode sequer ser vivenciado nos territórios periféricos. Não porque as pessoas não queiram, mas porque as circunstâncias sociais, econômicas e territoriais não permitem. E isso deve ser refletido por todas e todos nós. A pandemia ocasionada pela Covid-19 matou muitas pessoas. Gente de todas as classes sociais. Mas matou ainda mais os pobres, que majoritariamente estão nas periferias (e não por coincidência, também é formada por uma maioria negra). Até a publicação deste texto, já eram 661 mil mortes em decorrência do coronavírus.

Em sua coluna de 27 de março deste ano, Mônica Bergamo mostra como a população negra foi a que mais morreu por Covid-19 em São Paulo. "Uma pesquisa do Instituto Pólis mostra que a população negra e as famílias chefiadas por mulheres com renda de até três salários mínimos em São Paulo foram as mais afetadas com ações de despejo na pandemia, e também as que mais morreram por Covid-19", aponta a coluna.

Negros e negras representam 47,3% do total de pessoas que morreram, seja no centro ou na periferia. "A taxa está dez pontos percentuais acima da representatividade deste grupo na cidade: 37% da população de São Paulo é negra".

A questão de gênero também é um atravessador, já que o mesmo estudo mostra que famílias comandadas por mulheres com renda de até três salários mínimos representam 27,8% dos óbitos por Covid.

A pandemia encontrou rachaduras profundas de nossa sociedade e intensificou a insegurança alimentar, o desemprego e a falta de moradia. A mesma pesquisa mostra que os despejos afetaram ainda mais as famílias negras, que são 51,8% dos casos de despejo. E aquelas chefiadas por mulheres, que representam 27,9% dos casos de desocupações.

Um vírus que poderia ser combatido com água e sabão – dentre várias outras coisas, como uso de máscara e vontade política – encontrou um país que ainda possui diversos desafios sanitários. Segundo um estudo do Instituto Trata Brasil, divulgado no dia 22 de março, mais de 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada no Brasil e 100 milhões não possuem coleta de esgoto.

A Covid-19 também encontrou o afunilamento da fome. Em março, o Datafolha mostrou que 24% dos brasileiros acreditam que a quantidade de comida foi menor do que a necessária para alimentar toda a família.

O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil apontou, a partir de uma amostra com 2.180 domicílios, que ao menos 116 milhões de brasileiros estão em alguma situação de insegurança alimentar no país. A insegurança alimentar grave afeta 9% da população – ou seja, 19 milhões de brasileiros estão passando fome e 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave), aponta o levantamento. Refletimos sobre isso também por aqui.

Em um artigo do Morte Sem Tabu, explico como tudo isso está relacionado a um conceito chamado de necropolítica. O termo foi criado por Achille Mbembe, filósofo africano de Camarões, negro, historiador e teórico político que se debruça sobre isso no ensaio Necropolítica. "Mbembe diz que necropolítica é uma política da morte adaptada pelo Estado. É um fenômeno, onde o Estado vai escolher aqueles corpos que são descartáveis ou não são descartáveis. Aquelas pessoas que o Estado mata ou deixa morrer", contextualiza a advogada, mestre e doutora em Direito pela USP, Allyne Andrade.

Exemplos disso são quando o Estado deixa de construir uma política de prevenção às populações negras e pobres diante da pandemia de Covid-19, ou, então, negligencia a infraestrutura básica, como de saúde, educação ou trabalho.

Os lutos não reconhecidos nas periferias

Além da pandemia há, infelizmente, há outros lutos em curso nas periferias há muito tempo. O luto que passa despercebido por muita gente, o luto que ninguém sabe como foi, que ninguém ouviu falar, mas que está bem ali em nosso portão: o genecídio de jovens negros em todo o país.

Segundo o Atlas da Violência de 2021, no ano de 2019 ocorreram 45.503 homicídios. Desse total, a população negra representou 77% das vítimas no Brasil, com uma taxa de homicídios de 29,2 para 100 mil habitantes. Entre os não negros (amarelos, brancos e indígenas) a taxa doi de 11,2 para cada 100 mil. Ou seja, a chance de um negro ser assassinado é 2,6 maior comaprado aos não negros.

Os números também são alarmantes quando falamos sobre as mulheres negras: 66% do total de mulheres negras assassinadas no Brasil eram negras. A taxa de mortalidade de mulheres negras é de 4,1 para 100 mil habitantes. Entre as não negras, esse número cai para 2,5.

Na semana retrasada, publicamos um texto sobre a morte da jovem trans Priscila Diva, moradora do meu bairro, em Perus (SP). Priscila entrou para a triste estatística de pessoas trans que não chegam aos 35 anos.

Segundo dados da Transgender Europe (TGEU), o Brasil registrou 41% de todos os casos de assassinatos de pessoas trans em todo o mundo. O último relatório da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) mostra que, em 2021, aconteceram, ao menos, 140 assassinatos de pessoas trans, sendo 135 travestis e mulheres transexuais, e cinco casos de homens trans e pessoas transmasculinas. Em 2020, a organização mostrou que o número de mortes violentas chegou a 175.

A maioria das vítimas eram negras.Muitas vezes, as famílias dessas pessoas seguem uma vida toda sem justiça para seus entes. Muitas vezes, essas famílias não podem sequer citar a morte, pois também têm medo de represálias vindas dos mais diferentes grupos.

O jornalista Kaique Dalapola, que realiza há anos coberturas desse tipo, refletiu sobre os tabus em torno das mortes de pessoas assassinadas conosco neste texto aqui.

"Quando a pessoa é morta pela polícia, a família tem receio de denunciar. A maioria das famílias só aceita contar a história de maneira anônima e, mesmo assim, muitas vezes, os familiares não levam adiante", diz.

"Muitas vezes, a única que luta até o fim é a mãe. Em nenhum momento desacredita. Os outros familiares acabam naturalizando a morte e entendendo que o Estado está cumprindo seu papel", diz o jornalista, que tenta sempre respeitar os tempos, os medos e os lutos de cada família entrevistada.

São lutos pouco reconhecidos, pois sequer a pessoa que o sofre pode dizer ou gritar esse luto em voz alta. Quando morrem negros pobres, principalmente por conta da violência, a família, antes de tudo, procura preservar e honrar seu nome, principalmente para "provar" que esta pessoa não merecia ter morrido. Frases como "ele estudava inglês", "ele estava com o uniforme da escola" ou "meu filho não era bandido" são frequentemente usadas por essas famílias.

Mais uma vez, falta uma política de assistência social que dê conta de olhar para as diversas camadas dos lutos periféricos. Além da camada psíquica e do medo gerado após uma morte como essa, falar sobre luto na periferia é também falar sobre a segurança de quem fica.

Morremos na falta

Os números nos mostram que a violência contra os corpos negros ainda é mais aguçada do que para os corpos não negros. Essa violência faz parte do racismo estrutural que permeia nossa sociedade. Um racismo que, por muito tempo, ficou velado em uma falsa democracia racial em nosso país.

Há um genocídio em curso e que mata jovens negros diariamente. Mas é importante dizer que a população negra também morre por falta de oportunidades. Morre na falta de políticas de inserção ao trabalho. Morre na falta de políticas educacionais. Morre na falta de saúde de qualidade. Morre na falta de moradia, de alimentação. Vai, pouco a pouco, morrendo nas várias faltas. E isso também precisa ser discutido e também envolve os lutos diretos e indiretos pelo qual o povo negro e periférico atravessa.

A urgência de sobreviver

Como poder fomentar a reflexão sobre o luto nas periferias e entre a população mais pobre quando não há políticas públicas que possam acolher suas dores? Não basta abrir as feridas e chagas dessas pessoas e, depois, deixá-las sem nenhum tipo de cuidado ou acolhida..

Especialistas apontam que a cada morte, pelo menos 11 pessoas podem ficar em luto. Pensando que a maioria das mortes por Covid-19 afetou a população negra e periférica, isso quer dizer que temos milhões e milhões de pessoas em luto desassistidas. A urgência da sobrevivência dessa população não permite, muitas vezes, que essas mesmas pessoas tenham espaços e tempos para viver a dor do luto, o que pode acarretar, inclusive, outras questões ligadas à saúde mental, como depressão e ansiedade.

Há até algumas generalizações por parte das populações periféricas de que "depressão" é frescura, porque insistentemente foi mostrado a esse povo que a vida é assim mesmo e que é preciso seguir em frente.

Vejo isso com tristeza, pois são as pessoas que mais careciam de assistência psicológica para atravessar o racismo e desigualdades históricas e persistentes de nosso país. Refletimos sobre como o luto deve ser uma questão de saúde pública com a especialista Gabriela Casellato aqui.

Diante dos vários cortes direcionados às políticas de assistência social, serviços que poderiam acolher essas pessoas estão geralmente superlotados, com profissionais sendo mal pagos e em condições precárias de funcionamento. O luto deve ser olhado por nossas autoridades como uma questão de saúde pública e dentro das políticas permanentes de Estado.

Se uma pessoa possui um emprego em regime de CLT, ela ainda tem direito de, no mínimo, ter oito dias de luto. O que ainda é muito pouco, imaginando os movimentos circulares deste processo. Mas e quem trabalha como diarista, uber ou qualquer outro trabalho informal? Não tem direito à dor? Tem que aguentar a dor de todo e qualquer modo?

Como podem ver, temos mais perguntas do que respostas. Perguntas que não podem passar ilesas, principalmente neste ano eleitoral. Será que nossos e nossas candidatas estão pensando o luto em seus planos de governo ou irão mais uma vez negligenciar essa questão tão importante em tantos níveis? Continuaremos atentas.

Abaixo, deixo alguns conteúdos que produzimos sobre o luto da população negra e periférica e aproveito para indicar alguns serviços e especialistas que falam sobre o tema! Boa leitura!

Especialistas negros sobre luto

Ester Maria Horta
É Psicóloga, mulher, cis, negra. Especialista em Neuropsicologia pela Divisão de Psicologia do HC-FMUSP há 10 anos. Cursa ‘Atualização em Neuropsicologia do Desenvolvimento Infantil’ no Centro Paulista de Psicologia da Unifesp. Atualmente integra o conselho da Associação Aliança Pró Saúde da População Negra, membros do nucleo de São Paulo da ANPSINEP (Articulação Nacional de Psicologas(os) Negras(os) e pesquisadores enquanto paciente de Epilepsia e Esclerose Múltipla tem também como ativismo e pesquisa em doenças crônicas pelo recorte de gênero, raça e classe, em especial na população negra periférica. Redes sociais: @ester_psi

Leonardo Peçanha Leonardo Morjan Britto Peçanha é filho enlutado da D. Valquíria Britto (em memória) e Sr. José Peçanha. Cria de Padre Miguel, Jacarepaguá e Bonsucesso, zona oeste e subúrbio da cidade do Rio de Janeiro. Pesquisa os aspectos socioculturais da Educação Física, gênero, sexualidade e violência; transmasculinidades e saúde com enfoque transmasculino. É doutorando em Saúde Coletiva (IFF/FIOCRUZ), mestre em Ciências da Atividade Física (PGCAF-UNIVERSO) e especialista em Gênero e Sexualidade (IMS/UERJ). Licenciado e Bacharel em Educação Física, pesquisador e consultor de diversidade. É o Coordenador de Articulação Política e Advocacy no Luto do Homem e Aconselhador no Luto (EKR-Brasil). Idealizador do site Negros Blogueiros. Ativista dos direitos humanos. Ex-atleta amador de futebol, cinéfilo e amante de vídeo clipes.
Redes Sociais: @leonardombpecanha)

Iaçanã Woyames
Iaçanã é uma comunicóloga apaixonada pela conexão humana. Sua paixão mesmo é a comunicação autêntica e como ela pode conectar verdadeiramente com o outro e consigo mesmo. Depois de uma grande perda, seu filho Samuel viveu 35 minutos no ano de 2015, ela fui buscar entender mais sobre empatia e compaixão e assim conheceu a cnv - Comunicação Não-Violenta, de Marshall Rosenberg. Há quatro anos ela se dedica a estudar, viver e semear a CNV. E um dos seus temas preferidos é o luto. Há dois anos ela criou o @missaogirafa em que compartilha seus desafios e aprendizados na busca de ser girafa e alongar seu pescoço. E ainda do time O Espaço uma comunidade para experimentadores e praticantes de Comunicação não-violenta
Redes sociais: @missaogirafa

Clélia Prestes
Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP, 2018). Estágio doutoral no Departamento de Estudos Africanos e Afro-Diaspóricos (University of Texas at Austin, 2017), escreveu um artigo no Nexo Jornal que elucida muito bem o luto da população negra: ‘O luto por Kathlen representa um conjunto de despedidas’. Clélia também escreveu a tese Estratégias de promoção da saúde de mulheres negras: interseccionalidade e bem viver. Mestre em Psicologia Social (USP, 2013). Dissertação: Feridas até o coração, erguem-se negras guerreiras. Resiliência em mulheres negras: transmissão psíquica e pertencimentos. Psicóloga (1998) e Especialista em Psicologia Clínica Psicanalítica (2001) pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Pesquisadora do NEPAIDS-USP (Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids). Psicóloga do Instituto AMMA Psique e Negritude. Foi Consultora pela ONU Mulheres. Integra a Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) (ANPSINEP). Coordenou a Área de Psicologia da ABPN (Ass. Bras. Pesquisadorxs Negrxs). Experiência em Formação e Consultoria (Mátria - Psicologia e Relações Raciais).Redes Sociais: @clelia.prestes

Jeane Saskya Campos Tavares
É psicóloga, doutora em Saúde Pública (Instituto de Saúde Coletiva da UFBA) e docente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Integrante do CFP, trata das questões psicológicas e de saúde mental da população negra. Escreveu o artigo "Falando da perda: hoje estou mal, espero que você entenda", na Diplomatique BR, onde exemplifica as múltiplas perdas da população negra, principalmente em meio à pandemia.

Átila Roque
Átila Roque é Historiador, Cientista Político e Diretor da Fundação Ford no Brasil. Exerceu papel de liderança em diferentes organizações da sociedade civil no Brasil e no exterior. Foi Diretor Executivo da ActionAid International nos EUA e do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos). Antes de assumir a Fundação Ford, em 2017, foi Diretor Executivo da Anistia Internacional no Brasil. Faz parte do Conselho Diretor do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas). Redes Sociais: @atilaroque


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