Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente câncer

Câncer: o mal que tenho

Uma conversa com o escritor Igor Reyner sobre a Morte, com M maiúsculo

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Em março deste ano, algum amigo compartilhou um post no Instagram do escritor, doutor em literatura e pianista Igor Reyner, que, como eu, mora em Belo Horizonte-MG.

Nele, Igor divulgava o ensaio "O mal que tenho: sobre Proust, câncer e morte", que havia escrito sobre seu câncer. Depois de alguns meses com sintomas que inicialmente eram leves e o fizeram acreditar que estava com depressão, ele foi diagnosticado, em dezembro de 2018, com Linfoma de Hodgkin. Sua resposta ao tratamento com quimioterapia e radioterapia foi boa e ele retomou as suas atividades normais, chegando a se mudar para a Inglaterra por um período, como pesquisador visitante na universidade King’s College London. Em março de 2020, no entanto, logo após retornar ao Brasil, a doença recidivou e ele precisou passar por um transplante autólogo de medula, que terminou em setembro de 2020.

Como pesquisei sobre câncer no doutorado, sei que Proust é autor de "Em busca do tempo perdido" – uma expressão que resume muito do que penso e estudo – e amo tocar (mal) piano, a identificação foi imediata. Enviei uma mensagem ao Igor dizendo que queria muito ler seu texto.

O ensaio em fragmentos foi publicado na edição n. 40 da Revista Serrote e eu corri para a livraria Quixote para adquirir um exemplar. Comecei a ler o texto do Igor em um dia corrido, com a ideia de ler só um pedacinho. Mas não consegui parar. Os parágrafos dele conversavam com meus pensamentos e faziam com que eu tivesse reflexões que, mesmo depois de tanto tempo estudando e lendo sobre o assunto, eu ainda não havia tido.

Acho fascinante quantos resultados diferentes a combinação texto mais leitor pode proporcionar. Sempre que penso sobre isso, lembro da minha versão nas aulas do ensino fundamental, aprendendo análise combinatória. O número de possibilidades aumenta muito quando acrescentamos um novo elemento nessa matemática e, quando ele é o próprio autor do que estamos lendo, tende ao infinito.

Eu e o Igor passamos os últimos meses trocando áudios sobre o texto dele, sobre a minha leitura do texto dele e sobre quanto as nossas ideias conversam. Este texto é um um resumo dessa troca, das nossas reflexões. Também em fragmentos.

Foto de Igor Reyner
Foto de Igor Reyner - Lívia Aguiar

A Morte sempre nos pega de surpresa. Pode-se morrer num acidente de carro ou ser diagnosticado com uma doença terminal. Embora você possa morrer muito depois do seu diagnóstico, a surpresa lhe é entregue no momento em que você o recebe.

CYNTHIA – Enquanto estamos aqui conversando, pessoas como nós, muitas vezes jovens e saudáveis, estão morrendo repentinamente, depois de fazerem coisas simples e entediantes. Pessoas como eu e você, o tempo todo. Ainda assim, a Morte sempre nos pega de surpresa. O diagnóstico também, esse que pode ser o chamado para a morte repentina. Como foi para você?

IGOR – Eu recebi o diagnóstico como uma violência. A minha lembrança sobre esse momento é da morte se apresentando: estou aqui para você. Por mais que depois, depois desse golpe muito duro e incisivo, você possa pensar que a morte não é uma certeza, a primeira impressão é de que ela é algo iminente. A ideia de saber que a morte está vindo em sua direção é perturbadora. E foi um pouco isso que me levou a escrever esse ensaio, pois Proust experienciou algo semelhante um século antes, ele também percebeu a mesma dimensão do anúncio da morte.

Logo que eu cheguei em casa, após o diagnóstico, muito assustado, eu sentei ao piano e toquei. Toquei a Arabesque n. 1, de Claude Debussy. Foi uma forma de me reconectar comigo. Depois de tocar, fui para o meu quarto e conforme fui entendendo o que acontecia, veio uma vontade absurda de escrever. Foi quando eu comecei uma série de fragmentos. E foi uma catarse, de várias reflexões e angústias desse encontro com a morte.

É como você falou, sempre há pessoas morrendo, com idades diversas, perfis diversos. Mas isso é algo, de certa forma, distante de nós. Se nossa vida fosse um texto, seria como se a morte de pessoas desconhecidas estivesse entre parênteses, sem fazer parte do principal. Nem entre parênteses, na verdade, porque a consciência da morte não está incorporada ao texto. É como se ela fosse uma nota de fim, que você só vê se for ao final do livro olhar. A gente vê a morte, mas, muitas vezes, não se relaciona com ela. A morte não está ali; ela está , longe.

O diagnóstico de uma doença muito grave é, para mim, a convocação da nossa vida para a morte, no sentido de que estamos sendo convocados a lidar com ela. A morte sai do plano quase subliminar do texto para o primeiro plano dele. Para o primeiro plano da sua vida.

A gente orienta a nossa vida de certa forma através de ritos, ritos de passagem. E esses ritos são importantes como marcadores e como convites para que o sujeito reflita sobre eles, como o nascimento. Nós, enquanto sociedade, estabelecemos o nascimento, por exemplo, como algo intrinsecamente positivo – e é por isso que a discussão do aborto é tão difícil de ser feita. Por outro lado, nós [enquanto sociedade ocidental] não conseguimos atribuir essa mesma qualidade positiva à morte. Eu acredito que essa característica tão surpreendente de um diagnóstico – que não deveria ser tão surpreendente assim, porque nós conhecemos as estatísticas – vem daí, de não conseguirmos, ao menos a maioria de nós, atribuir um sentido positivo à morte. Nós só pensamos na morte como ausência, como perda, como derrota. E o sentido negativo leva à negação. É uma dinâmica dicotômica, em que a vida é necessariamente boa e a morte é necessariamente ruim.

Mas nós podemos tornar um pouco mais positiva a experiência de morte, não de uma forma tóxica ou religiosa, ao menos para mim, mas no sentido de afirmar a sua existência como uma parte fundamental da vida. Em grande medida o que nos move positivamente é a morte, mesmo quando não tomamos consciência disso. E a morte também pode ser celebrada como algo incrível, que é a vida, que foi a vida de um indivíduo.

CYNTHIA – Há alguns anos, eu li sobre um oncologista que foi muito criticado por dizer que o diagnóstico de câncer poderia ser encarado como uma oportunidade de se viver o fim da sua vida – de se despedir, de se arrepender, de fazer o seu último ato. Você acha essa ideia absurda?

IGOR – Acho que é mania do pensamento racionalista ocidental hierarquizar as coisas. Eu diria, a partir de Proust, que existe uma morte para cada indivíduo. Cada morte é única. E a hierarquização das formas de morrer ou das mortes das pessoas cria uma falsa ideia de que uma morte é preferível à outra, o que pode levar a idealizações. Eu prefiro trabalhar com o que é dado: existem pessoas que morrem inesperadamente, de mortes absurdas. E é claro que isso é muito violento, mas essa violência, muitas vezes, existe para quem fica, não para quem morreu. Porque quem morreu está morto – ao menos dentro do que eu acredito.

Nesse processo, a pessoa que morreu é tolhida de lidar com o processo de morrer, mas ela não tem como sentir falta disso, por isso não vejo grandezas mensuráveis. Mas para as pessoas ao redor, isso tem um impacto profundo e, muitas vezes, insuperável.

Pensando sobre a oportunidade de se despedir, de dar uma conclusão, fazer uma passagem, eu acredito que o que é necessário é que, como sociedade, a gente mude a nossa postura de negar a experiência da morte. No lugar disso, precisamos afirmar essa transição, da ruptura definitiva com a presença física.

Mas eu não acredito na romantização desse processo. Uma doença pode ser horrível para a família e para o doente, não necessariamente essa oportunidade de despedida será algo bonito e positivo. É importante afirmar a morte, para que esse processo possa ampliar as perspectivas sobre a vida. Mas não no sentido de que isso será um mar de rosas.

Pense positivo! Tenha fé! Não pense nisso!

CYNTHIA – Você escreve que "Pense positivo"e formulações afins são um "fecha-te, sésamo" que aprisiona a dor do paciente numa caverna que não está cheia de tesouros, mas de culpa, sofrimento e pensamentos vãos e labirínticos.

IGOR – O lugar-comum não me ajuda. Reforços de positividade, "vai ficar tudo bem", "vai dar tudo certo", podem ter impacto em outras pessoas, mas não em mim.

Eu senti falta, no meu tratamento em geral, de uma maior capacitação dos profissionais de saúde para compreenderem a dimensão psicológica dos pacientes. Falta a formação para perceber que as pessoas têm personalidades e bases morais diferentes, e que isso impacta na linguagem mais adequada para cada um. A melhor interação acaba ficando no campo das habilidades pessoais, sem técnica. Ao mesmo tempo, muitos profissionais de saúde acabam trazendo para o trabalho as próprias visões de mundo, no lugar de ajudar o paciente com suas próprias visões de mundo.

Foto da capa do Ensaio O mal que tenho, de Igor Reyner, na Revista Serrote n. 40
Ensaio O mal que tenho, de Igor Reyner, na Revista Serrote n. 40 - George Condo

Às vésperas da Segunda Guerra, em busca de um antídoto para o gás mostarda, os cientistas Louis Goodman e Alfred Gilman observaram uma possível relação entre ele, os glóbulos brancos e os cânceres sanguíneos como a leucemia e o linfoma. Em 27 de agosto de 1942, um paciente que entrou nos anais da medicina simplesmente como J.D. e que, na altura, sofria de um linfoma avançado, recebeu um tratamento experimental com mostarda nitrogenada, o composto originalmente usado para produzir a arma química. Embora J.D. tenha morrido seis meses depois do tratamento experimental, suas condições clínicas melhoraram consideravelmente depois de algumas doses do veneno

CYNTHIA – J.D. morreu apesar da melhora em suas condições clínicas. Embora esse não seja o intuito dessa passagem, foi o que mais me chamou a atenção. Muitos pacientes se transformam apenas nas próprias doenças aos olhos da Medicina, a pessoa por trás do doente acaba em segundo plano. Você pensou sobre isso na sua vivência e na sua escrita?

IGOR – Algo que me encanta muito na escrita é que diferentes leitores enfatizam partes diferentes dos textos e muitas reflexões são produtos do encontro entre o leitor e o texto. Isso que você levantou não estava no meu consciente imediato enquanto eu escrevia, embora seja pertinente, atravesse o texto e já tenha me ocorrido.

O que eu pretendia enfatizar é que, como eu sou uma pessoa desfavorável à militarização, descobrir que o tratamento é literalmente produto da guerra, de pesquisas feitas com a finalidade da guerra me impressionou muito. Mas essa mudança no foco que você deu tem tudo a ver com esse fragmento e com o fragmento em que digo que o corpo do paciente é um campo de batalha e que o corpo do paciente com câncer, para o bem ou para o mal, está sempre no caminho. O corpo é o problema, ele produz o problema. É necessário encontrar uma maneira de destruir esse problema sem destruir esse corpo. E encontrar essa medida com drogas tão fortes e tão invasivas é difícil.

CYNTHIA – Não me lembro exatamente onde li uma frase parecida com esta, talvez em Imperador de todos os males, de Siddhartha Mukherjee: matar o câncer é fácil; difícil é não matar o paciente junto.

IGOR – Quando você fala em pessoa por trás da doença, eu penso nesse corpo, que fica entre a medicina e o paciente. Esse corpo, que aparece como uma barreira, é muitas vezes agredido, agressivamente atropelado, na ânsia de enfrentar a doença.

Eu sinto que nunca se trata apenas da doença. Eu não acho que seja possível isolar a doença da experiência da doença para pacientes que não estejam inconscientes. Eu demorei muito a ser diagnosticado, mas eu já estava vivendo a doença. Eu me coçava dormindo, Cynthia. Eu acordava com manchas de sangue na cama, tossia até vomitar. Depois que eu fui diagnosticado e o tratamento aliviou esses sintomas, eu parei de experienciar a doença. Eu sabia que estava doente, mas não sentia da mesma forma que antes. No lugar, eu sentia os efeitos colaterais horríveis do tratamento, mas, depois que isso melhorou um pouco, a dimensão mais percebida por mim era a ideia. A ideia de estar com câncer.

A partir daqui, escreverei "Morte" com M maiúsculo, pois como o narrador de Em busca do tempo perdido, prefiro pensar nela como um sujeito que merece o próprio nome e gênero (…). Presenteá-la com um nome e um gênero parece uma forma eficiente de fazer com que ela pareça mais humana. Estranhamente semelhante a nós, ela se torna menos ameaçadora, e até amigável.

CYNTHIA – Eu te contei que, quando li seu ensaio, estava fazendo uma matéria sobre a Dona Morte, da Turma da Mônica, e isso foi uma coincidência incrível. Eu e o Mauricio de Sousa falamos muito sobre a preocupação dele em mostrar a morte como uma figura mais humana, que não tivesse um rosto assustador e com quem fosse possível bater um papo antes do momento final. Faz sentido eu ter pensado na Dona Morte ao ler esse fragmento?

IGOR – Eu achei super bacana você entrevistar o Mauricio sobre a Dona Morte e acho que tem tudo a ver, embora em dimensões diferentes, porque o meu texto e o texto do Proust são bem mais dramáticos.

Quando eu conversei com a oncologista e entendi como funcionaria o transplante, no meio de uma pandemia, quando entendi a completa vulnerabilidade do meu corpo, desprovido de defesa, era difícil carregar o peso do meu corpo para casa. Você fica nu diante da morte. Eu pensava: "vou morrer". E só consegui processar a ideia do transplante quando entendi que precisava lidar com tudo de forma mais leve. Não no sentido de negar a gravidade da situação, mas assumir que a interação com a morte é inevitável e que, no fim das contas, a morte sempre vence.

E eu acho que personificar a morte, que é esse processo que, dentre outros, o Mauricio de Sousa e o Proust fizeram, e que eu fiz ao colocar esse M maiúsculo, é uma estratégia que dá à experiência da morte um caráter mais humano. Antropomorfizar a morte faz com que a gente lide com ela de forma mais horizontal, ao invés de ser uma relação vertical, em que a morte está acima, ainda que saibamos que ela é inevitável e vá acontecer para todos nós. Ao fazer isso, acredito que a gente estabelece uma relação um pouco mais tranquila, um pouco mais dialogável com essa experiência.

Diante de uma catástrofe natural, por exemplo, o ser humano é totalmente reduzido, não há qualquer possibilidade de interação. É você versus uma força desproporcionalmente superior e poderosa, é completamente desigual. Mas se você humaniza a morte, cria essa personagem, você estabelece uma relação mais igual e estabelece um canal de diálogo. E isso é uma estratégia para nos permitir estabelecer um sentido para essa relação, porque ela passa a ser mais do que um simples efeito, ela passa a ser uma interação. Você não é mais apenas uma vítima ou o resultado de algo maior. Você não interage com um tsunami como você pode interagir com uma figura humanizada. Eu acho que isso dá um certo conforto, uma leveza.

Para mim, pelo menos, isso aconteceu.

******

Essa última resposta do Igor, que eu achei genial, fez com que eu pensasse também na filosofia de Gabriel Marcel. Marcel afirma que o desespero é "o choque sentido pela mente quando encontra com um ‘não há mais’", um sentimento de que não há saída para a situação em que se encontra o indivíduo. Ele se descobre, então, incapaz de estabelecer qualquer tipo de relação que o permita transcender sua dor e vivenciar uma experiência de cura.

A forma de superar o desespero é incorporá-lo. É criar possibilidades reais a partir da situação posta e interferir nos desfechos possíveis a partir de atos também possíveis. É, quem sabe, dialogar com a morte.

Igor lembra que esse processo imaginativo de humanizar a morte é uma estratégia muito poderosa, porque torna possível estabelecer uma relação afetiva e até simular essa experiência.

E quem sabe, assim, a gente até se permita morrer.

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