Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

É sempre a hora da nossa morte

Luto e suicídio nas sílabas de sábado

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Conheci a autora Mariana Salomão Carrara pelos títulos incríveis dos seus livros. Não me lembro bem quando me deparei pela primeira vez com "se Deus me chamar não vou" e "É sempre a hora da nossa morte amém", mas sei que pensei: não sei do que tratam os livros, mas queria ter escrito esses títulos.

Eu me identifiquei com a escrita da Maria Carmem– e da Mari Carrara, ou vice-versa– nas primeiras páginas de "se Deus me chamar". E, como não poderia deixar de ser, o fato de que ela escreve sobre medo da morte me fascinou. Com a minha mania de mandar mensagens para as pessoas de quem leio os textos como se elas soubessem que os li, mesmo que não façam qualquer ideia de quem eu seja, escrevi para a Mariana. E foi assim que eu soube que ela lançaria um livro sobre luto em 2022.

Desde então, esperei ansiosamente por "Não fossem as sílabas do sábado"– já disse a ela que coloque títulos maravilhosos e originais à venda, eu compraria um com certeza.

A obra foi lançada em São Paulo no último dia 11 de junho, oito dias antes da data que se convencionou chamar de dia nacional do luto no Brasil.

As vicissitudes da morte são o fio condutor das histórias de Mariana, mas é nas entrelinhas que elas se destacam, na implicitude de tudo aquilo que não precisa ser dito. Ler "morte" é menos impactante do que ler "a arquitetura dos planos interrompidos", afinal.

"Não fossem as sílabas" conta a história de Ana, arquiteta, casada, mas constou viúva. Viúva.

O sentimento de culpa por provocar tudo aquilo que não deveria ter sido é mais forte nos detalhes. Ana não contou para ninguém que o marido sai de casa e logo é inesperadamente morto– daquelas formas absurdas pelas quais ninguém deveria morrer– para atender um pedido seu, urgente sem qualquer urgência. Se o porteiro tivesse demorado um ou dois segundos para destravar a porta, ou quem sabe um segundo menos, então André, o marido, estaria vivo. (E quem sabe a ninguém nunca ocorresse que mais um pouco e ele estaria morto, como afinal esteve)

Madalena também perdeu o seu marido. Madalena não sabe manter nada vivo e esqueceu seu homem-orquídea secando diante da janela.

No meio disso, Ana está gestando Catarina, que sórdida mãe quase monossilábica escolhe para a filha um nome tão cheio– de sílabas. A Catarina chorava como se pouco a pouco eu estivesse dando a notícia e a cada hora ela reaprendesse a própria tragédia.

Os constrangimentos do luto são contados aos poucos. Os amigos todos desconfortáveis, o berço que preferia estar em um lugar compatível com a alegria de um berço. Se ele pudesse faria como os meus amigos que não suportavam mais de trinta minutos ao lado do meu silêncio, mas compreendo, eu teria feito o mesmo, teria oferecido um abraço à amiga viúva e então corrido pra casa para certificar que todos continuavam vivos e não morreriam nunca.

Ao enxergar a mortalidade do outro, reconheço a minha– é o que dizem muitos livros sobre luto que não conseguem escancarar a realidade como a ficção de Mariana.

É também na ficção de Mariana que o paradoxo do suicídio toma forma quase exata, como uma pessoa que ainda sabe gargalhar decide uma coisa dessas. Não sei se "Se não fossem as sílabas" é um livro para ser lido por todo mundo, aliás, acho que não. Não sei bem o que pode ou não gerar certos gatilhos a pessoas que, assim como Ana, eu não compreendo, não porque as julgue, apenas porque não sei.

Mais do que os gatilhos, eu fiquei apreensiva com a culpa que geralmente paira sobre as mentes dos sobreviventes. Não há redenção para eles nas sílabas da autora, ao menos não naquelas que se leem com os olhos.

É possível, ainda, encontrar as críticas sociais que permeiam os livros da Mariana e que dialogam bem diretamente comigo no momento. Eu, que consigo ler o seu livro e escrever este texto durante a madrugada, enquanto a minha filha de um ano está dormindo, mas só porque amanhã é o sábado sim(/sábado não), quando cuida dela pela manhã o anjo da guarda que vulgarmente chamam de babá – mas deveriam chamar de viabilizadora de sanidade e sonhos. Uma mulher que eu ficaria olhando sabendo que era uma mulher que tinha dado conta de tudo, dos três ou quatro filhos sem nenhuma babá, o genitor morto ou ausente, a babá que ainda por cima trabalhava fora de casa sem nenhum espaço para depressões, uma mulher guerreiríssima extraordinária espremendo minha miséria junto com os sucos frescos que faria para nós com as frutas que já traria da venda ao chegar, depois das três conduções que pegaria quando deixasse os três ou quatro filhos alguns na creche e outros na escola.

Poucas coisas escancaram tanto os privilégios quanto a morte e o luto, se é que há luto em tantos casos.

Não fico totalmente infeliz, isso não, há muitos anos que não, mas também não acho jeito de ficar de fato feliz. O luto pode durar um ano, o luto pode durar dez anos, pode durar até um livro inteiro. Tudo que importa está no céu, mas a gente vai ser feliz eu prometo.

Acho incrível como a Mariana consegue encaixar frases e parágrafos tão profundos em suas histórias de ficção. Admiro profundamente essa forma de escrever que torna quase palpáveis reflexões tão pouco escrevíveis.

Eu no meio de um parque pensaria o que penso quando vejo pessoas distraídas, quantas delas estão lembrando que existe a morte, quase nenhuma, não lembrar que morremos é um prazer insatisfatório porque só o notamos quando já se foi, quando a lembrança veio com a sua fatalidade imprevisível, estamos caminhando devagar num parque e nada disso é para sempre, quantas pessoas estão se lembrando disso, que felizes estão essas pessoas distraídas da morte e no entanto que imperceptível é essa felicidade que só se pode constatar nos instantes em que nos escapa. É isso que quero dizer quando escrevo que pessoas morrem o tempo todo, mesmo quando jovens demais e saudáveis demais, pessoas que estão vivas e no minuto seguinte simplesmente não estão – e mesmo sabendo disso, continuamos vivendo como se só o outro morresse e de repente morremos os nossos e nós.

Que luta constante é essa da permanência.

Cynthia Pereira de Araújo

Doutora em Direito pela PUC-Minas, com doutorado-sanduíche pela Universidade de Vechta/Alemanha (bolsista Capes-Daad). Autora da obra "Existe Direito à Esperança? Saúde no Contexto do Câncer e Fim de Vida". Advogada da União.

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