Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente alimentação

Nutrição artificial: quando alimentar não faz mais sentido

Muitas vezes, a alimentação artificial é contrária ao conforto no fim da vida

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Recentemente, vimos no Instagram da ANCP – Academia Nacional de Cuidados Paliativos a publicação de um posicionamento sobre a não implementação ou retirada de dieta em paciente em estado vegetativo crônico.

O anúncio logo nos chamou a atenção.

Em 2007, o advogado alemão especializado em direito médico Wolfgang Putz orientou os filhos de uma paciente que estava em coma – em virtude de um acidente vascular encefálico (AVE) hemorrágico – há cinco anos, a interromper a alimentação artificial que a mantinha viva. O advogado foi acusado como coautor de tentativa de homicídio e, embora a filha alegasse que a mãe houvera informado verbalmente que não gostaria de medidas que prolongassem artificialmente sua vida, ele foi condenado pelo Tribunal alemão em primeira instância. Em segunda instância, no entanto, o Tribunal estabeleceu uma diferenciação entre condutas ativas e passivas e, reconhecendo o valor jurídico da manifestação de vontade da paciente e seu direito à autodeterminação, absolveu o advogado.

A interpretação da autonomia pelas Cortes judiciais alemãs, desde o chamado caso Putz, passou a reconhecer o direito à autodeterminação para a prática da eutanásia passiva – mediante condutas que, no Brasil, em muitos casos, equivaleriam à ortotanásia.

O caso Putz, paradigmático no contexto jurídico da Alemanha, é também uma boa referência para o enfrentamento das questões que permeiam a limitação terapêutica no Brasil.

Por aqui, é necessário dizer que, no ano de 2006, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução n.º 1805, por meio da qual

Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.

§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.

Embora esse ato normativo tenha paralelo em diversos sistemas ao redor do mundo, ele enfrentou, no Brasil, alguma resistência. Em 2007, o Ministério Público Federal ajuizou uma Ação Civil Pública, Processo n.º 2007.34.00.014809-3, requerendo que fosse declarada nula a Resolução. O pedido foi julgado improcedente, ou seja, manteve-se a validade da Resolução e o reconhecimento da licitude da limitação de esforço terapêutico no Brasil.

A não introdução ou a retirada de suporte artificial de vida, tal como o suporte nutricional, é não apenas lícita, como a mais indicada em muitos casos, os quais, naturalmente, precisam ser individualmente avaliados por uma equipe técnica especializada.

Isso porque, para uma parte crescente do meio científico, em especial os paliativistas, questionam-se os reais benefícios do suporte nutricional nesses pacientes. Eles entendem "que o desconforto e as complicações oriundas da terapia nutricional superam os seus benefícios, que são controversos, pois não há estudos que comprovem o aumento da sobrevida e, principalmente, a melhora da qualidade de vida dos pacientes fora das possibilidades de cura. Ademais, evidências indicam que pacientes que se permite deixar morrer sem hidratação artificial morrem mais confortavelmente que pacientes que receberam hidratação artificial; as desvantagens de seu início ou manutenção superariam, pois, as vantagens, não se podendo privar-lhes da recusa a esse tratamento".

No posicionamento da ANCP junto à ABN - Academia Brasileira de Neurologia que mencionei no início, conclui-se o seguinte:

1. É ético e legal a renúncia à dieta artificial (não instalação ou retirada), diante de situação de estado vegetativo crônico onde haja clareza, após o devido processo de avaliação diagnóstica e prognóstica por equipe interdisciplinar experiente no manejo de pacientes com distúrbios prolongados de consciência, de que as possibilidades de recuperação da consciência e/ou da funcionalidade são mínimos e haja evidências obtidas através de diretivas antecipadas de vontade ou de relatos de familiares e entes queridos do paciente de que, para o mesmo, em função de seus valores pessoais, ser mantido indefinidamente em tais condições representaria algo pior do que a própria morte. Nestes casos, a retirada/não introdução da nutrição e hidratação por via artificial não correspondem nem a eutanásia nem ao suicídio.

2. A suspensão/não introdução de nutrição e hidratação por via artificial somente pode ser realizada mediante o consentimento esclarecido do representante legal do paciente.

3. Cada caso deve ser avaliado individualmente levando em consideração os diferentes graus de incerteza relacionados ao prognóstico de sobrevivência, recuperação da consciência e da funcionalidade do paciente, sempre respeitando suas crenças e valores, os quais são essenciais para a definição daquilo que corresponde ao seu melhor interesse em cada situação.

4. A discussão sobre a retirada ou não implementação da nutrição e hidratação por via artificial deve ser pautada por uma comunicação proativa e compassiva, sem qualquer forma de coerção e em consonância com o que se espera de qualquer processo de decisão compartilhada digno deste nome.

5. Sempre que possível, os profissionais de saúde devem promover conversas sobre os valores e preferências de cuidados de seus pacientes enquanto estes estão de posse de suas capacidades mentais e de comunicação, encorajar a identificação de um representante e documentar as diretivas antecipadas de vontade de pacientes em seus prontuários, de forma que, em situações tais como o estado vegetativo crônico, elas possam contribuir para a tomada de decisão compartilhada com seu representante sempre respeitando o melhor interesse dos pacientes.

Concordamos com as conclusões. Mas, dezesseis anos depois da Resolução n. 1805, o que faz a ANCP entender necessário dizer algo que já deveria balizar a conduta médica há tanto tempo?

Um dos motivos para que a suspensão de alimentação e da hidratação traga desconforto aos familiares pode ser justamente a falta de informação. Sem saber que isso será melhor para a pessoa amada, acabam não entendendo sua motivação. No processo natural da morte, os órgãos vão parando de funcionar. Forçar água e nutrientes para um corpo que está desligando pode trazer sofrimento e muitas vezes não será a melhor conduta médica. Nosso instinto pela vida tem como memória afetiva uma mãe amamentando um bebê, no centro da nossa evolução como espécie. Passamos a vida buscando comida e água. É compreensível que seja difícil desapegar desse propósito. Só que no final da vida, esse propósito muda. O corpo não mais exige a busca por nutrientes e água. Ele quer carinho, conforto, e a compreensão de que o fim pode ser aceito como algo bonito. E não como uma guerra perdida.

Preocupa-nos que estejamos revendo posições éticas tão solidificadas na nossa comunidade científica e na sociedade, já em atraso em relação aos demais países. Depois de décadas, há quem queira que o aborto decorrente de estupro seja penalizado. Há quem discuta a importância da educação sexual desde cedo. Há quem pretenda que a sociedade desconfie da segurança das vacinas, uma das maiores conquistas da humanidade. E há quem queira que uma pessoa que manifestou a vida inteira sua vontade de que medidas terapêuticas obstinadas não fossem adotadas não tenha liberdade sobre o próprio corpo, sobre a própria vida.

Enquanto isso, seguimos benevolentes com as promessas vazias de cura, livremente anunciadas em relatórios de médicos que temem tão pouco a sua responsabilização, que oferecem suas prescrições à judicialização sem qualquer receio de que a mentira ali contada seja tratada como é: uma mentira.

A conclusão que tiramos desse cenário é de que querem substituir cânones bioéticos há muito estabelecidos, em especial a autonomia devidamente informada. Não que não possamos – e devamos – rever posições que um dia já foram consideradas socialmente aceitáveis ou óbvias. Mas precisamos entender o que orienta essas revisões. E nesse caso, nós nos perguntamos, com muito medo, o que pretendem colocar no lugar. Principalmente, perguntamos: a quem isso interessa?

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