Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu
Mente

A gata não quer mais água

Conheça os cuidados paliativos para PETs

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Minha gata estava com 17 anos quando simplesmente passou a rejeitar comida. É verdade que já estava bem magrinha e um pouco sem jeito na caminhada. Olhava para o adorado tronco, todo arranhado de aventuras anteriores, com total desdém.

A nova gatinha da família rodopiava de um abajur ao outro provocando suspiros impacientes à gata velha, mais a fim de poupar energia do que gastá-la.

Até que um dia me dei conta de que ela não tinha mais interesse pela comida. Nem aquela pasta, cara e fedorenta, a ração úmida, atraía a atenção dela. Ela não tinha uma doença específica que justificasse isso. Eram os anos dando um limite ao corpo. Envelhecimento não é doença, mas é uma condição que também aproxima o fim da vida.

Logo ela passou a rejeitar água. Eu aproximava o potinho, ela virava a cabeça. Os olhos foram afundando, sinal de desidratação.

Um pensamento escorregou em voz alta: ela está morrendo. Meus filhos escutaram e concordaram. Ela se despedia.

E agora? Saio correndo até um hospital veterinário? Eles iriam hidratá-la à força, imediatamente. Soro na veia. Se ela não melhorasse, eutanásia.

Me lembrei dos artigos que escrevi sobre cuidados paliativos, a morte natural, e principalmente da minha própria experiência, acompanhando meu sogro. E imaginei que se podemos desejar uma morte natural para os humanos, por que não as desejar para os bichanos que nos acompanham?

A questão da hidratação e da alimentação no final da vida é um ponto muito importante para os paliativistas. Muitos defendem que é mais confortável morrer desidratado. Por isso o corpo, quando está em processo de desligamento, rejeita água. Os órgãos já não estão mais querendo funcionar e a gente fica entupindo combustível?

Mas me pergunta se eu deixei de dar água para minha gata? Muito difícil. Coloquei gotas em uma seringa sem agulha e fui tentando dar água como se fosse remédio. Ela me olhou com muita certeza: Camila, me deixe em paz. Ah, não consigo querida felina. Você é minha companheira há 17 anos!

Eu entendia que alimentar à força naquele momento não era o melhor a fazer por ela, mas ainda não conseguia agir diferente. Pelo menos, não sem apoio.

Pedi ajuda e descobri que há cuidados paliativos veterinários. Nossa, como fiquei feliz. É super recente, os primeiros cursos de formação são de 2018.

Entrei em contato com a veterinária paliativista Deborah Calgaro, do centro de reabilitação veterinária Flor de Lótus.

Ela não podia vir até minha casa imediatamente, mas foi acompanhando por telefone. Eu falei da minha dificuldade em simplesmente aceitar que a gatinha não iria mais comer ou beber. Deborah disse entender minha aflição, afinal, damos afeto pela comida. Toda vez que colocamos ração e água, estamos entregando afeto. Deixar de dá-lo é angustiante. Só de escutar Deborah falando isso, já me confortou. Ela também me explicou como funciona o corpo no processo ativo de morte. E que não seria a falta de comida, ou de água, que iria matar minha gatinha. Ela vai morrer porque ela está morrendo. Seu corpo está desligando.

Em uma manhã, Deborah me escreveu: "Bom dia, Camila, como vocês estão hoje?". Eu já tinha falado com vários veterinários por mensagem, e ela foi a única que me incluiu nesse processo de cuidado. O plural, vocês, foi sentido como um abraço. Sorri.

Ela receitou dipirona para aliviar a dor. Não poderia ser paracetamol. Com gatos, só dipirona.

A gatinha parecia querer ficar sozinha em um canto fora da casa. Mas Deborah insistiu: leva-a para seu quarto. Ainda bem, porque foi em um segundo bem distraído meu, que eu a escutei dando o último suspiro,.

Deborah iria nos visitar na sexta-feira, às 14h30. Quando deu uma da tarde, minha gata vomitou um líquido verde. Ela respirava e pausava em apneia. Coloquei a mão sobre ela e senti seu coração parar de bater. Falei algumas palavras íntimas demais para serem compartilhadas. Ela se espreguiçou, e morreu. Uma patinha cruzada em cima da outra, como gostava de ficar. Ela ainda deu um último suspiro, depois da pausa, como se estivesse em choque.

Deborah me explicou que é comum o vômito porque o corpo tende a expelir o líquido: é mais confortável desligar desidratado. O choque do corpo é o coração tentando uma última adrenalina para ver se reage.

Não reagiu. Foi embora a Tantan.

Meus filhos estavam no último dia de aula antes das férias. Quando os busquei na escola, combinamos um enterro. Eles viram a gatinha sem vida. Achei importante entrarem em contato com a morte concreta. Ver que o corpo fica sem vida. Sentir na ponta dos dedos o que é isso, de forma natural. Não me perguntaram para onde foi Tantan. Eles já sabem que eu não tenho resposta objetiva para isso.

Minha filha, mais nova, tratou-a como se fosse um bicho de pelúcia. Queria dar banho. Em algumas culturas, banhar o corpo morto é um ato de grande valor. Significa honrar aquela pessoa de uma forma profunda. Mas não, não deixei.

Fizemos seu funeral acompanhados de amigos.

Pensando agora... me parece que ela teve uma morte boa. Não parecia estar em sofrimento. Ela estava relaxada, ao meu lado. E foi embora, como o sopro da flor dente-de-leão. O que eu fiz foi não atrapalhar esse processo.

Eu só consegui fazer isso porque encontrei uma veterinária paliativista que me ofereceu suporte de uma forma muito verdadeira. Ela trazia explicações para as dúvidas que eu tinha: o que fazer com a água, como saber se o animal tem dor, o que medicar, ele sente mais frio ou calor? E sentir a legitimação de que quem cuida do outro nesse processo, também precisa de amparo.

Deborah me contou sentir certa frustração durante sua graduação por não ter uma só matéria que falasse sobre a morte.

"A minha percepção é que na medicina veterinária, a gente carrega o medo da morte que a medicina humana também tem. A ideia de que a morte é um insucesso profissional. Se o paciente morre, eu estou falhando como profissional. Então, se a morte será um insucesso, eu vou distanasiar, forçar a barra do paciente, tentando buscar uma melhora. Ou, se é uma doença difícil e eu sei que esse paciente vai morrer, já vou sugerir a eutanásia. Mas o sofrimento vai existir nos dois caminhos, porque a eutanásia também é uma decisão difícil".

Ela se formou e decidiu trabalhar nas UTIs dos hospitais veterinários para entender melhor esse momento, o da iminência da morte. Quando ficou sabendo do curso de cuidados paliativos, encantou-se totalmente. "Os cuidados paliativos abrem uma porta na sua vida que nunca mais se fecha. É uma mudança muito grande de visão".

Eu contei aqui uma história particular, para no final dizer: quando estiverem acompanhando a morte de alguém, humano ou bichano, saibam que existe uma área da medicina chamada cuidados paliativos. Pesquise aqui na categoria do blog outros posts com esse tema.

Acompanhar uma morte natural, quando possível, é a experiência mais próxima do divino que eu já tive. Não é bonito, não é feliz. É um mergulho nessa profundidade do cosmos. É sentir o infinito emergindo de um ponto final.

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