Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

Carta para minha filha

Dias mulheres virão

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Quando eu ainda achava que não seria mãe, compartilhava com muitas outras não candidatas a mães o temor pelo mundo que os filhos dos outros encontrariam pela frente.

Nossos medos foram todos confirmados, mas eu me tornei mãe também. E que mundo terrível você encontrou, filha.

Você é uma criança branca, o que te garante muitos privilégios de berço. Mas ainda assim você é uma menina em um mundo criado pelos homens para os homens.

Nós, mulheres, ainda não começamos a criar este mundo, filha, ainda não nos deram essa chance. E talvez por isso ele seja tão capenga.

Sempre achei que a história é cíclica, que estamos fadados a repetir os erros do passado pela incrível incapacidade de não aprender com eles. Mas, na verdade, o que muitas vezes consideramos "erros do passado" não passa de estratégias muito bem definidas para o benefício de alguns – especialmente os mesmos homens, especialmente os mesmos homens brancos.

Nós perdemos o momento de dizer agora chega. Nós estamos dizendo que agora passou de todos os limites há tanto tempo, que parece que sobrou mais coisa fora do limite do que dentro dele.

Como você vai aprender, filha, quando queremos destacar o imenso absurdo de algum momento histórico, costumamos nos reportar ao nazismo. Acredito que o motivo pelo qual fazemos isso é desconhecido da maior parte das pessoas. Desde que estamos por aqui, o homem tem praticado muitas outras atrocidades, diversos genocídios.

O que torna o nazismo um exemplo tão peculiar é que transformamos em norma, escrevemos no papel, fizemos registro da permissão de absurdos que há bastante tempo a razão humana já houvera definido como contrários a um senso mínimo de humanidade. Foi assim, aliás, que punimos esses atos. Punimos por reconhecer que não era possível a qualquer pessoa, naquele momento, julgar que seria permitido dizimar um povo nas câmaras de gás em qualquer circunstância. Matar as crianças, matar os idosos, matar, porque não cabiam mais. Simplesmente exterminar quem não era suficientemente útil para, literalmente, caber nos espaços que lhes haviam sido impostos.

A era da razão parece ter acabado. Tomamos conhecimento de que um número muito grande de pessoas não se consterna, não se importa e até admira o que pouco tempo atrás era inadmissível em qualquer circunstância. Perdemos o óbvio e estamos no estado de torpor de quem percebe que passamos a justificar o absurdo de uma maneira que não fizemos nem no marco histórico paradigmático da barbárie. Estamos voltando a defender práticas que pareciam erradicadas. Estamos aceitando de volta até mesmo as doenças erradicadas.

No início da minha adolescência, fez muito sucesso uma música chamada How bizarre. Eu só me lembro do refrão, que dizia "Isso está me deixando louco, toda vez que olho ao redor, está no meu rosto". É assim que me sinto. O bizarro está estampado no rosto de muitos de nós, mas nos faltam forças para resistir, porque existir tem consumido todas as nossas energias.

Está muito difícil dar algum passo para além de escrever as nossas angústias e seguir repetindo frases prontas. Devemos resistir à normalização do absurdo. Mas como?

Eu não sei como. Mas desse medo do mundo que você vai enfrentar, há de surgir uma irresistível capacidade de resistir. Eu não tenho esperança, mas tenho certeza. Nós, mulheres, vamos reconstruir esse mundo para você, Beatriz.

bebê coloca a mão em globo iluminado
Beatriz toca o mundo - Daniel Negrão

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