Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Mente

Inevitável: o mundo pandêmico pelos olhos de um bebê

Covid-19, crianças e medo

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Na semana passada, li a matéria da Folha de São Paulo "Pandemia muda imaginário de crianças e bicho papão dá lugar ao medo da morte".

Nela, a jornalista Gabriela Cupani repercute a dissertação de mestrado da psicóloga Geovana Figueira Gomes, sobre a natureza dos medos infantis e lembra "a importância de filtrar as informações que chegam até os mais novos, e de ajudá-los a entender e processar o que estão absorvendo".

Logo no título, já fui remetida a uma cena que vejo acontecer o tempo todo: minha filha de pouco mais de um ano aponta para cada recipiente de álcool em gel que vê pela frente e passa uma mão na outra.

No início, ela só apontava. Depois, começou a pedir para apertar ou colocar a mão embaixo. Agora, ela está comemorando cada vez que encontra um, porque reflete o que vê em mim.

Eu não devia estranhar, fui avisada de que os bebês repetem tudo que a gente faz. Mas ver um mundo pandêmico pelos olhos de alguém que só conhece esse mundo tem me feito refletir muito sobre as decisões que tomei desde o início para tentar proteger as pessoas que eu amo.

Quando a pandemia começou, meus pais estavam na Alemanha. De um dia para o outro, o hotel em que eles estavam hospedados informou que eles teriam que sair. Ainda sem entender direito de que forma o Brasil seria atingido pelo novo vírus, as ruas europeias já estavam vazias. O aeroporto de Guarulhos, onde nos reencontramos, ainda não fazia ideia do que estava por vir. Éramos os únicos de máscara e a ideia de distanciamento social não parecia fazer sentido para quase ninguém.

As coisas foram mudando aos poucos. De repente, passamos a ter medo de que os nossos mais velhos adoecessem. As crianças não eram uma preocupação, "nelas a doença é leve", disseram.

Quando descobri que estava esperando a Beatriz, em setembro de 2020, meus pais ainda eram nossa prioridade, mas os estudos indicavam uma preocupação especial com as grávidas. De certa forma, foi a minha filha que fez com que meu pai aguentasse as restrições por tanto tempo, mesmo depois de estar vacinado.

Eu tomei a primeira dose da vacina em junho de 2021, pouco tempo depois do parto, no grupo prioritário de puérperas. O sentimento de que eu poderia estar imunizando o meu bebê através do leite foi importante para atravessar uma das fases mais desafiadoras da vida de uma pessoa que pare um filho.

Mesmo assim, eu não permiti que quase ninguém nos visitasse e mesmo as tias e os avós precisavam manter as máscaras se não estivessem em isolamento. Eu e meu marido passamos quase seis meses cuidando sozinhos de nossa filha. Prestes a terminar minha licença-maternidade, precisava de ajuda externa. Exigi máscara, N95. Disseram que eu estava exagerando.

Poucas pessoas me entenderam. Já tem um tempo que faço pesquisa sobre doença, morte e fim de vida e acho que quanto mais estudo a importância de aceitar o inevitável, torna-se impositivo o evitável. É muito difícil, muitas vezes impossível, impedir o acometimento pelas doenças mais graves que conhecemos. Mas a Covid-19 é uma doença potencialmente evitável.

Recentemente, uma das melhores jornalistas especialistas em saúde que conheço, Cláudia Collucci, mostrou que, em dois anos de pandemia, o número de crianças mortas pela Covid-19 foi mais do que 3 vezes o número de mortes por outras 14 doenças, também evitáveis. Isso já seria suficientemente ruim, mas o problema é muito maior.

As estruturas pediátricas são pequenas e, quanto mais crianças infectadas, maior o número de internações. Ainda demoraremos a estimar o impacto indireto da Covid-19 sobre as outras doenças e as outras mortes evitáveis. Diversos estados vêm reportando falta de leitos e pediatras, especialmente depois de mais de dois anos de pandemia de uma doença extremamente contagiosa, que continua adoecendo os profissionais de saúde.

Os efeitos da Covid-19 a longo prazo estão sendo estudados, sabemos ainda pouco sobre eles. Entre viver e morrer, há incontáveis possibilidades, diferentes vidas possíveis. Eu não quero apenas que minha filha fique viva. Quero que ela seja poupada, na maior medida possível, dos tantos problemas de saúde decorrentes da doença que já identificamos até agora- e dos muitos ainda por identificar. E, no que eu puder interferir, quero que a mãe dela também esteja viva e saudável.

Impacto populacional é dado essencial para a formulação de políticas públicas e priorização de recursos, mas eu sou mãe. Se acontecer algo com a minha filha, não me importa que "só" tenha acontecido com ela e mais três mil ou que ela seja uma em um milhão de bebês. Terá sido o meu mundo inteiro, mesmo que não faça diferença ao mundo dos outros.

Como eu costumo dizer, quase tudo em crianças é raro. Mas números são sempre relativos. Aproximadamente 6,5 milhões de crianças menores de 15 anos morreram em 2017. Isso significa menos de 0,1% da população mundial. Parece pouco para você? Nem vou entrar na questão de que milhões dessas crianças morrem por nascerem onde nascem. E que isso tende a ser ainda pior agora, já que grande parte dos pais dessas crianças morreram precocemente nos últimos dois anos.

bebê coloca a mão em globo iluminado
bebê coloca a mão em globo iluminado - Daniel Negrão

Assumir riscos é uma necessidade. Cada vez que eu coloco a Beatriz dentro de um carro e saio de casa, eu estou assumindo um. Faz parte da vida escolher os que estamos dispostos a correr. Mas eu sempre penso nas consequências das minhas decisões. Se eu abolisse as máscaras e passasse a frequentar lugares cheios de gente e minha filha adoecesse, eu não poderia me perdoar. É isso que determina as minhas ações. A capacidade de aceitar a (in)evitabilidade.

Em breve, minha filha estará integralmente imunizada, porque eu tornei isso uma prioridade- e, principalmente, porque eu tenho condições de levá-la para tomar as vacinas, assim como tive, desde o início, de nos proteger das multidões. É um privilégio, claro. Mas dentro e fora dos privilégios, também fazemos muitas escolhas.

Passando a conviver com outras pessoas, longe dos meus olhos, sem que eu possa exigir a cada uma delas que esteja de máscara e lave as mãos, minha filha possivelmente adoecerá. E poderei lidar com isso. Hoje, por mais que eu reflita sobre de que forma a minha preocupação neste mundo pandêmico vai impactar o imaginário dela, a ponto de a fazer temer a morte mais do que ao bicho-papão, ainda não posso.

Vamos seguir comemorando cada vez que encontrarmos álcool em gel nos recipientes cada vez mais vazios, que cruzarmos com pessoas que seguirem usando máscaras em lugares fechados ou cheios. Na maior parte do mundo, ainda não existe outra forma de proteger as nossas crianças pequenas. E, infelizmente, mesmo quando a vacina para o público de até três anos chegar ao Brasil, sabemos que haverá relutância de parte dos pais.

Eu não tenho medo da vacina, pelo contrário, tenho medo da falta dela. Tenho medo do número de pessoas bem informadas que começaram a questionar a segurança e a importância de imunizar as crianças. Tenho medo de não conseguir proteger a minha criança, quando minhas escolhas não forem o suficiente para isso.

Uma bebê aperta o pote de alcool gel
Beatriz e o alcool gel - Arquivo Pessoal Cynthia Araújo

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