Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto
Descrição de chapéu câncer União Europeia

De cânceres e vidas

Com a pandemia, 1 milhão de casos de câncer deixaram de ser diagnosticados na Europa. Como sobrevivente, sou testemunha de atrasos e omissões nos tratamentos

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Câncer: hoje o papo é pessoal.

Hoje, 4 de fevereiro, é o Dia Mundial Contra o Câncer. A data, muito pessoal pour moi, me provoca cosquinhas n'alma.

Os números são repetidos à exaustão: 1 a cada 3 pessoas vai ter um câncer na vida; 1 a cada 8 mulheres será diagnosticada com câncer de mama.

3 imagens repetidas mostram uma mulher com o torso desnudo e os braços erguidos
Eu-por-eu-merma - Susana Bragatto / Reprodução

Ganhei na loteria. Nesta, pelo menos. Quatro anos atrás, num exame de rotina, descobriram um troço no meu peito que não tinha que estar lá. Ou tinha?

Seguiu-se todo o périplo já (também exaustivamente) retratado em filme/novela/série: 6 longos meses de quimioterapia, em que deixei pra trás muito mais que minhas longas melenas; radioterapia, aka torração de peito, que me deixou de legado umas tatuagens de pontinhos no tórax, usados pra sincronizar os raios da máquina, e que na época me deixaram #xatiada porque pareciam espinhas no meu decote.

Ó-céus, ó-drama, ó-vida.

Desde então, também me drogo com pílulas e injeções da pessssada, para, reza o protocolo, diminuir minha chance de voltar a acertar na loteria, com um prêmio quem sabe ainda maior: a metástase, palavra escalofriante para qualquer paciente de câncer em remissão ou, francamente, para qualquer ser humanus no planetazul.

(ps. essa das fotos acima sô ieu na costa de Tamarit, Espanha, justo depois de completar os ciclos de quimioterapia)

De 2017 pra cá, conheci muita gente com jornadas parecidas, diversas, várias. Em grupos de apoio, jornadas científicas, esquinas acidentais. Algumas muito velhinhas e outras, tão jovens. Algumas já não estão mais aqui.

Outras, felizardas –e não guerreiras, como a mídia gosta de chamar, porque, vivos ou mortos, todos fomos pro combate, poha –, buscam refazer suas vidas e caminhar lado a lado com o ubíquo (e, na minha visão, salutar) lembrete sobre A Finitude De Tudo y Tutti.

Minhas cicatrizes aqui estão, dinâmicas e flanando asas, em âmbitos peitorais e astrais. Não sem orgulho, que a jornada foi/é lôka, compañeros. Nénon?

***
Estima-se que pelo menos 100 milhões de exames de detecção de câncer foram cancelados na Europa por conta da chegada do coronavírus em 2020.

Isso se traduziria em pelo menos 1 milhão de casos não diagnosticados ao longo do primeiro ano da pandemia.

Há muito por melhorar. Os sistemas de diagnóstico, o acesso ao sistema de saúde, o aperfeiçoamento de tratamentos e a investigação relacionada a frentes sensíveis como imunoterapias personalizadas e abordagens terapêuticas para o câncer metastásico.

Segundo a comissária de Saúde e Segurança Alimentar da União Europeia, a cipriota Stella Kyriakides, o continente ainda está contabilizando o ônus da pandemia dentro do contexto do câncer. Ela explica, por exemplo, que 1 a cada 5 pacientes com a doença "segue sem receber tratamento cirúrgico ou quimioterapia (...) devido à saturação dos sistemas sanitários".

"Devido à pandemia, temos uma estimativa de 1 milhão de casos de câncer não diagnosticados, o que significa que 1 milhão de pessoas poderiam receber seu diagnóstico tarde, o que provavelmente afetará seu prognóstico, suas possibilidades de tratamento e sua qualidade de vida", afirma.

Como eu sempre digo, gente. Vacinação, prevenção e máscara não servem só pra combater a "gripezinha". A pandemia e os hospitais cheios afetam tudo.

***

Com minha oncologista, esta semana, debatemos se seguimos ou não com uma das medicações, que vinha me dando depressão, fadiga e outros paranauês (são fármacos antiestrogênicos ou, como diz minha médica, "castradores" –vai imaginando..).

Analisamos juntas meu mammaprint –estudo genômico que indica a (alta, no meu caso) probabilidade de recidiva do câncer –e estudos relacionados. "Para pacientes muito jovens como você" (claro, só pras estatísticas canceriofofológicas eu sou super xovemmm), diz ela, "existem benefícios".

— De quanto estamos falando, doutora? –já me acostumei a conversar com a onco como se fosse filme de máfia.

— Os estudos indicam aproximadamente 3% mais de proteção ao longo dos cinco primeiros anos pós-câncer.

— Bora nessa.

Três. Por. Cento. Pode não parecer nada. Mas quem viveu, quem conhece, sabe que qualquer raspa de tacho serve.

É um preço alto pra muito pouco? A medicina, quero crer, vai seguir avançando ainda mais e nos fará sobreviventes cada vez mais numerosos, felizes e saudáveis, como já vem acontecendo nas últimas décadas.

Três. Por. Cento.

Ah, correção: eu não ganhei na loteria uma vez, mas duas. A segunda: renascer.

Sinhô, sinhóra: que cada dia dessa vida-vasta-vida tenha importância e reverberância no teu esprítu. Não só o 4 de fevereiro ou algum dia feliz. Que, a qualquer esquina, nos esperam loterias, cicatrizes, belezas, finitudes...

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