Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto
Descrição de chapéu Europa

Laranjas, nova ômicron e quartas doses

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O menino chuta a bola e anuncia:

—Tô de saco cheio de futebol!

Ele, o maior do grupo, moletom cinza de mangas arregaçadas e duas rodelas de rubor nas bochechas macias, claramente comanda a situação.

Como em resposta a um sinal invisível, os pequenos se reúnem ao seu redor, expectantes e submissos. O maior sabe que tá abafando. Saboreia uma pausa dramática (só eu, sentada no banco da praça, noto?) e, finalmente, solta a ordem:

—VAMO ROUBAR LARANJA.

Achei pitoresco.

As ruas dos bairros de Barcelona pululam de laranjeiras que dão frutos notoriamente intragáveis. Além do mais, a uma altura proibitiva do solo. Uma vez eu tentei. Provei. Cuspi.

***

Parvamente contemplando essa curiosa cena tipo Armación Ilimitada for Kids, demoro uns segundos pra lembrar que não é época de laranjas em Barcelona.

***
Oh-yea, cá nazoropa temos novidade omicrômica no aire: uma galante nova sub-variante batizada de "sigilosa" invadiu território espanhol nos últimos 2 dias, e já responde por meia dezena de casos (que se saiba, claro). Até agora, foi detectada em 40 países, como Reino Unido, Índia e Suécia.

O nome de batismo vem exatamente do fato de que é mais difícil detectá-la por PCR ou antígenos. Quanto à transmissibilidade e seriedade dos sintomas, é similar à ômicron "descarada" ou "dominatrix" que já virou nossa miiiga (sei lá, digo eu, pra fazer uma distinção).

Na Dinamarca, onde 40% dos casos das últimas duas semanas são atribuídos à nova sub, estudos preliminares não apontam grandes diferenças quanto à cobertura vacinal, isto é, as vacinas distribuídas atualmente parecem dar conta também desse novo sub-ômicron.

*ai, ai.*

Fico aqui já antecipando outras sub-sub-cepas surgindo da noite pro dia, com seus respectivos apostos originais, tipo nome-de-reis-e-cavaleiros-da-Idade-Média meet robô-gerador-randômico-de-nomes-de-banda.

Ômicron IV, A Indefectível. Kappa Girl, A Aurora da Mooca (seguro que vai aparecer uma cepa na Mooca). Abajur Cor de Carne, O Mistério. Purse Naro, El Vendedor del Apocalipse. Olavo Peçonha, Abrenuncio* Desencarnado dus Cacete. Sei lá. Sou ruim pra esse exercício criativo. Façam suas combinações, batizemos as futuras gerações.

Quando esgotarmos as 24 letras do alfabeto grego, podemos passar pro japonês, pra dar uma vibe assim reflexiva-wabi-sabi-anti-oestecentrista à situêition internacional. Fica a proposta, tá.

***

Além da nova Sigilosa, também começa a se falar na España em quarta dose da vacina, a ser aplicada cinco meses depois da terceira, para uma proteção três vezes maior.

Maior, mais potente, mais brilhante, mais além do arco-íris e das nuvens cor de mel lalalalala.

(tomei a terceira dose hoje e tô meio grogue. Ou será angústia existencial, essa sigilosa?)

***

O Garoto Maior Chefudo baixa a voz, expõe a tática em poucas palavras. Um dos moleke faz boliña de catota, concentrado.
—A quitanda. A da esquina. Tá. As laranjas tão na parte de fora e não dá pra ver de dentro. Eu cubro e você, Martín, mete debaixo da jaqueta.

O Martín, minigarotim loirim com o topete meio cobrindo o olho esquerdo, parece contrariado com o recrutamento. Abre a boca, mas não diz nada. Seguramente não está pensando em tea and oranges that come all the way from China**. Nem na faceira vendedora de laranjas de "La Merienda", de Goya***.

Qué más dá, roubar laranjas. Esses europeuziños ibéricos rechonchudos, tão distantes do menino das laranjas do Théo de Barros, que vive no morro e vai tentando encontrar/um pouco pra comer/viver até crescer.

O grupo de meliantes mirins se afasta e eu perco a conversa e o fim da história, damn...


* perdão, Guimarães, pela apropriêition
(Abrenuncio, palabreta-latinesca-bodosa extraída de Grande Sertão. Aka deus-me-livre, sai-fora, cruz-credo)

** De "Suzanne", de Leonard Cohen. Suzanne, a musa e amiga, jura que servia chá com laranjas. Cohen jura(va) que o chá é que vinha com pedacinhos de laranja suspensos. Quem jamais saberá.

*** Parte de uma famosa sequência de tapeçarias que retratam cenas cotidianas da España do século 18. Nesta, "majos" e "majas" -- pequenos-burgueses madrileños, notadamente do belo bairro hoje conhecido como Malasaña, então chamado Maravillas -- fazem um piquenique à beira do rio Manzanares enquanto mandam a pata gorda na vendedora de laranjas, que, por sua vez, parece contemplar os piropos (cantadas baratex) dos majos ébrios com ar blasé//matreiro.

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