Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto
Descrição de chapéu refugiados África

A viagem dos que não voltam: a difícil jornada de imigrantes africanos na Espanha

Depois da perigosa travessia por mar, desafio é fazer vida em uma nova terra

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

PRÓLOGO: passeando pela calçada, tarde dourada de primavera. Um senhor, caminhando muuuy lentamente, leva na mão quatro mudinhas de plantas.

Um bebê. Era apenas um bebê.

Nabody, como foi identificada pela mídia local, tinha apenas 2 anos em março de 2021 quando cruzou os mais de 600 quilômetros entre Dakhla, na costa do Marrocos, e as Ilhas Canárias, no sul da Espanha.

Viajava em uma patera, uma embarcação precária, pouco mais que uma canoa, com 51 outras pessoas –entre elas, oito crianças, além de sua mãe e a irmã pequena de 13 anos. São dois dias de viagem da pesssada.

(Pra ce ter uma ideia: em geral, os imigrantes chegam por mar em barquinhos de pouco calado e sem cobertura, desses usados pra trajetos curtos ou transportar passageiros de uma margem a outra de rio, por exemplo. Chamados de pateras, cayucos ou zodiacs (no caso de botes com motor), são miniembarcações sumamente obviamente ululantemente inadequadas para travessias oceânicas. Segundo a Organização Internacional para as Migrações, braço da ONU, estima-se que 1 de cada 11 migrantes não chega ao seu destino)


Depois de dois dias no mar, Nabody, que nasceu em Mali, no oeste africano, chegou em Las Palmas, ilha principal do arquipélago espanhol das Canárias, em estado grave, como outras pessoas que viajavam no mesmo barco.

Quase todos os doentes a bordo eram mulheres e crianças, o que levou as autoridades a desconfiar de alguns viajantes homens que, como não é raro acontecer nesses casos, poderiam ter deliberadamente se apropriado das rações de comida.

Depois de uma parada cardíaca e cinco dias no hospital, Nabody faleceu. Na época, sua morte reacendeu a discussão sobre imigração africana no continente. Políticos, médicos e ONGs vieram a público para protestar, denunciar, reclamar.

Só nas Ilhas Canárias, chegaram no último ano 28 mil imigrantes por mar. A Espanha, como já ocorre há anos, é um dos top destinos europeus para imigrantes das mais diversas procedências. Em 2021, foi o terceiro país europeu a receber mais imigrantes, atrás apenas de Alemanha e França.

Das quase 15 mil petições formais de asilo registradas em 2021 na Espanha, 9% veio de Mali, nação afetada por conflitos jihadistas há mais de uma década. Em seguida, como já vinha acontecendo nos últimos anos, vêm os venezuelanos e colombianos, com aproximadamente 20% cada.

(nesse textículo não cabem todas as considerações sobre outras imigrações, que são abundantes e também têm suas agruras. pra um próximo Normalitas)


Há cada vez mais mulheres e crianças entre os imigrantes. Agora, é preciso contabilizar, além do mais, as ucranianas, com as quais venho topando com frequência em Barcelona. Vêm sem maridos e filhos maiores de idade, com crianças de colo e muitas incertezas.

No caso de mulheres oriundas de culturas tradicionalistas, além do mais, estatisticamente não só escapam de conflitos, miséria, guerras; fogem também de casamentos forçados, violência de gênero e mutilação genital. Buscam – como todos – uma vida melhor.

***

Se chegar na Espanha num barquim caseiro atravessando oceanos, tormentas e fome parece um desafio louco, ficar e fazer vida em uma Nova Terra não fica atrás.

Nesse sentido, o pronunciamento feito esta semana pelo ombudsman (é, aqui tem dessas) catalão, David Bondia, sobre melhorar as políticas de acolhidas de jovens imigrantes sem famílias em Barcelona vem em bom momento --se for além das belas palavras.

Barcelona, terra de belezas y oportunidades –e, aqui e ali, de jovens imigrantes sobrevivendo precariamente em assentamentos, barracas, casas ou antigos galpões industriais ocupados.

Estima-se que há atualmente mais de 200 "menas" (sigla para Menores Estrangeiros Não Acompanhados) vivendo em situação de rua ou em "infravivendas" na cidade. O termo ganhou uma conotação negativa nos últimos anos, sendo associado no imaginário popular ao noticiário sobre delitos cometidos por imigrantes.

Bondia, advogado especializado em Direitos Humanos, e que em sua recente posse do cargo vendeu o conceito de "direitos humanos de proximidade", defendeu a adoção de medidas mais concretas para apoiar os jovens em seu processo de transição para a vida adulta em um novo país.

Como Abad*, do Marrocos, 21 anos. Rapper, talentoso, dando seus pulos. Entrevistado por uma amiga minha para um documentário sobre os menas, desde então desapareceu. Depois de completados 18 anos, os lares temporários oferecidos pelos serviços de assistência social locais não mais aceitam os menas, e é cada um por si –demais da conta.

Majid*, de Gana, também entrevistado pela minha amiga, é outro exemplo. Amável e sorridente por default, quase como uma pantomima defensiva, não termina de se acostumar com a solidão e a dificuldade de conseguir – e manter – um trabalho.

A cada ano, necessita renovar sua permissão de residência, e, para isso, necessita um trabalho, para o qual, por sua vez, necessita a permissão de residência. Sacô.

Agora mesmo, trabalha em uma fazenda a uma hora de Barcelona por um salário minguado, que mal dá pra um quartinho compartilhado e algo de comer. Além do mais, a cor negra de sua pele, diz, não facilita fazer amigos ou conseguir um trampo melhor. Uma merda. Ainda assim, agradece, sorri. É melhor aqui.

***

Nabody: francamente, não encontrei o significado do nome (se alguém souber, me diz). Curioso – ou não –, soa a quase-Ninguém/Nobody.

Quase, mas não, e sequer era esse seu verdadeiro nome, como se descobriu depois. A vida e morte anônima. Não teve tempo de lançar raízes em uma nova terra e viver a tal síndrome de Ulisses do imigrante, essa mistura de saudade de casa e nunca-chegar. Nabody, nabody.


* nomes alterados

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.