Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Bonaparte na Espanha, cachaça, Liz Taylor (parte II)

De como o irmão do Napoleão ganharia dos espanhóis o implacável apelido de Zé Cachaça

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(Esse artigo é continuação deste)

No artigo anterior, contava como José Bonaparte, irmão mais velho de Napoleão, virou rei da Espanha lá pelos idos de mileoitocentos, quase (dizem) para seu desgosto. A missão impossível: acalmar os ânimos espanhóis durante a invasão napoleônica.

Durante seu breve reinado (1808- 1813), Zé Bona, perdão, José I, es cierto, viveu aventuras, teve 1805719adf amantes, tentou agradar a cristo e ricos. O de sempre, vamos. Não rolou, errou rude, errou feio.

Ainda por cima, e esse é o tema aqui, sofreu um incessante bullying por parte da população española, passando à história como Zé, O Cachaceiro (ou, no original, "Pepe Botella [garrafa]").

E como foi que isso aconteceu?

Picardia antigringa do povo español.

Logo depois de assumir o trono, em plena Guerra de Independência espanhola, José anunciou a primeira reforma.

Numa tentativa de ganhar a simpatia da população, Zé Bona libera a "fabricação, circulação e venda" de jogos de cartas.

Segundo o real-decreto de fevereiro de 1809, o nome do "comissionado" ou "administrador" que recebesse o imposto sobre os baralhos constaria no seis de copas.

Baralhos sem a assinatura oficial seriam confiscados, e seus comerciantes e compradores, "castigados com as penas prescritas nas reais instruções e ordens".

Com essa primeira medida, José I já foi tirado de VivaLasVegas (se Las Vegas existisse então) e defensor da jogatina.

Pintura mostra rei vestido de gala com cetro e trono
José I Bonaparte, Rei da Espanha (1768-1844). Óleo sobre lenço, 1809. Robert LEFÈVRE - Reprodução

Mas o apelido histórico pegaria mesmo com a segunda reforma, dias depois.

Com ela, o rei liberava a fabricação, circulação e venda de bebidas alcoólicas, chamadas, genericamente, de "rosolis" (aguardentes de procedências e fórmulas variadas que levavam açúcar, canela, anis e plantiñas) e "licores" ou "aguardentes". O decreto instituía impostos mais baratos também.

Caricaturas da época mostram o rei napoleônico rodeado de vinhos e naipes de baralho. Muitas vezes, com um pepino –alusão ao apelido que ele ganhou ("Pepe", apelido de José em espanhol, é "Pepino", em italiano) –e, sempre, com uma garrafa-botella.


***

Outras medidas de cunho popular/ista se seguiriam, sem no entanto alterar a rejeição geral ao mandato napoleônico.

Por exemplo, embora fosse um "antitaurino" notório, José I ressuscitou as touradas (proibidas durante o reinado de Carlos IV) e as transformou de novo em eventos populares e gratuitos.

Oh-no.

O povo se jogou em massa nos espetáculos, mas a fama de loki de Pepe Cachaça seguiu inabalável.

Segundo o historiador alicantino José Piqueres, estudioso de Bonaparte e seu período na Espanha, o monarca "tentou de todas as maneiras [ganhar a aprovação pública]". Com a imprensa, com a presença constante na Igreja pra dar a imagem de católico, em suas saídas ao teatro, festas..."

(ora, ora, que familiar soa tudo ilson)

Mas, diz Piqueres, a "propaganda patriótica" levou a melhor, popularizando caricaturas como esta:

Caricatura mostra José Bonaparte, irmão de Napoleão, ajoelhado dentro de uma garrafa e cercado de anjos
José Bonaparte retratado como Pepe Botella em caricatura de época - Museu de História de Madri / Reprodução

De fato, ouvi falar de "Pepe Botella" pela primeira vez como uma piada, quando um amigo se referia a outro que andava meio trupicante depois de uns bons vin. A alcunha histórica está em livros escolares, é aprendida por crianças, virou pop.

***
Claro, nem tudo eram piadas. Havia uma Guerra de Independência rolando, com o apoio das tropas britânicas e portuguesas contra o Império Francês.

O fim da história do Pepe-Zé, que deixou o reinado em 1813 para dar lugar a Fernando VII, é que se mandou pra um povoado chamado Bordentown em New Jersey, Estados Unidos.

Na bagagem, o danado levou jóias da coroa espanhola (que vendeu pra construir uma mansãozinha básica), cisnes importados do Velho Continente e uma coleção de livros que, durante um breve período histórico, foi considerada a maior e mais importante do país.

Em resumo, eu diria: tadinho não era.

Caricatura mostra rei sentado sobre um pepino segurando uma garrafa e olhando um rapaz que lhe oferece uma taça de vinho e um macaco com uma carta de naipe de baralhos
Caricatura de época mostra José I Bonaparte da Espanha montado no pepino (!) - Reprodução

Passou seus últimos dias dando festinhas e recebendo ilustres como o presidente amerrricaine John Quincy Adams (1825-1829) ou o banqueiro escravocrata maior-ricaço-do-país Stephen Girard (minto: em 1939, voltou de vez pra Europa, onde faleceria 5 anos depois).

Uma das jóias espanholas r̶o̶u̶b̶ levadas por Pepe foi "A Peregrina", uma pérola que Felipe II deu de presente a Maria Tudor e que, oh-vida, em 1969 foi parar no pescoço da Elizabeth Taylor, como mimo de seu então marido Richard Burton.

(aliás, essa pérola gorrrducha em forma de gota tem uma história interessante, fica pra uma próxima coluna!)

Em tempo: a revolução das "cigarreiras" de Cádiz, mencionada na parte I desse artigo, também é histórica. Um grupo de mulheres antimonarquistas e defensoras de direitos iguais botou a boca no mundo logo antes da aprovação da Constituição de Cádiz de 1812, conhecida como "La Pepa".

A esperança era que o documento plasmasse pelo menos parte das reivindicações. Não o fez.

Ainda assim, é até hoje considerada a primeira constituição espanhola (a anterior, de Bayona, 1808), e muito avançada para a época, graças à influência liberal francesa. Durou dois anos, sendo anulada por Fernando VII em 1814, com a derrota napoleônica.

O apelido "La Pepa" vem de Pepe, em homenagem ao dia em que foi promulgada, 19 de março, dia de San José. Pepe, Pepa. Zé, Zefa, cachaças, histórias...

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