Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Leques espanhóis, Tinders arcaicos e um calor daqueles

A história dos abanadores vai muito além das míticas dançarinas de flamenco

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Barcelona, junho de 2022.

Flores tardias de quase-verão vão murchando com o calor recorde na Espanha, o mais fritante dos últimos 20 anos.

Isso de ser brazilêra vivendo nazoropa® e, portanto, Resistente Ao Calor Que For (o que muito gringo pensa que a gente é, como detentores de uma espécie de superpoder equatoriano) é lenda.

Venham para o Mediterrâneo desértico de pináceas retorcidas por tramontanas* e arbustos empoeirados de alecrim e me digam. Tudo prototipicamente lindo, mas o solo, gente, que um dia já guardou semelhanças com nossa Mata Atlântica, más bien se apresenta hoje em dia seco, impenetrável. Um suspiro nem cabe em seu peito ardido.

Pois, como dizia, venham e os levarei por caminhos costeiros catalães e me direis, gotas saladas escorrendo pela fronte desfigurada: ora, pipocas (palomitas, aqui), que calor do c, let’s go back to Bahia.

Na cidade, a senhora ao meu lado espera pra atravessar a rua (asfalto reluzente de meio-dia, mais calor, ambulâncias). Sacode o leque branco de bolinhas vermelhas, bem andaluz, com violência, diria, desesperada. Dou um passinho em sua direção pra aproveitar o ventinho. Que a vida (sobre)vive nos detalhes, já dizia o Veríssimo em correntes do facebook.

(alguém aí ainda usa Facebook)

****

Leques, esse símbolo obrigatório espanhol, como touros (hmm), paella (errr) e̶ ̶a̶ ̶S̶h̶a̶k̶i̶r̶a̶ ̶s̶e̶m̶ ̶P̶i̶q̶u̶é̶. Em nossos sonhos, as españolas dançarinas de flamenco adornam o cabelo com flores, dizem 'olé' e têm um leque nas mãos.

Fato factual é que, no verão espanhol, banquinhas com exemplares de papel chanfrado ou tecido vagabundo presos a uma base articulada de plástico estão por toda parte.

Uma amiga espanhola me ensina a abri-lo e fechá-lo rapidamente, à la Maria Antonieta caprichosa. Orgulhosa y obsessivo-compulsiva, eu a deixo louca com meu incessante vraaa vraaaa vraaaaa.

***

Por volta do século 15, o leque chegou na Europa pela mão de portugueses e jesuítas vindos do Oriente – embora haja quem defenda a ideia de que sua origem na real é o norte africano, considerando além do mais que os egípcios já se abanavam há muito mais tempo blablabla –, e vira, a princípio, artigo de luxo.

Empunhado por homens e mulheres como símbolo de status, era preferencialmente confeccionado com materiais doces y caros como seda, rendas, plumas, fibras de ouro. Às vezes, assinado por artistas famosos. Pequenos ou escandalosamente grandes, rígidos (paipai) ou dobráveis. Havia os comemorativos, com motivos florais, com cenas pinturescas, passarinhos etc.

Daí até chegar ao Locomía da minha infância nos anos 1980 muitas águas rolaram.

(eu era tarada pelo ketchubari e sua coreografia léquiica pansexxy ibicenca quando criança)

***

Nos séculos 18 e 19, flanando suas asinhas em cortes europeias, o manejo do leque adquiriu conotações de uma espécie de Tinder rudimentar, com códigos elaborados para a comunicação entre amantes.

Existem inúmeros ‘ dicionários’ ou interpretações por aí, mas a linguagem básica poderia ser assim:

Leque abanado no peito: tô solteirx, tô livre, vem ni mim (especialmente se mostrar o lado do desenho – se for o lado contrário, pode significar ‘ não’ )
Leque fechado tocando a bochecha esquerda: não
Leque fechado na bochecha direita: sim
Leque aberto cobrindo a cara, com os olhos descobertos: te quiero, mamón!
Leque aberto no peito: vem comigo, mamón!
Abanando rápido: me gustas, mamón
Abanando devagar: nah. Indiferença. Ou, encenado com a volúpia e olhar adequados, equals tô-facinhx. (eu sei, isso tá ficando complicado, mas, gente, quando é que foi claro?!)
Leque fechado no coração: te amo.
Leque sobre os lábios: beija eu me beija.
Fechando o leque com brusquidão: pode ser sinal de ódio ou impaciência.

Etc, e tudo ao contrário.

A importância do leque na Espanha era tal que, no século 19, foi criada a Real Fábrica de Abanicos em Valência, com consequente consagração sindical dos mestres abaniqueros.

Hoje, a maioria dos talleres de leques na Espanha se concentra hoje no município de Aldaya (ou Aldaia em valencià), em Valência, onde há inclusive um museu dedicado ao tema.

Desde os tempos dos retratos da nobreza abanante realizados por Goya, Zuloaga e outros, o leque virou pop e hoje reluz como souvenir nacional ao lado de bonequinhas flamencas, garrafas de sangría com formato de touro (ayy, que taurimaquia ainda é hit em alguns redutos) e lagartixas do Gaudí.

mulher espanhola com leque e xale sobre os cabelos negros posa para pintura
"Mulher de Madri", Ignacio Zuloaga y Zabaleta, 1913. Detalhe (Museu do Prado / Reprodução) - Reprodução

Além do mais, é acessório obrigatório da dança flamenca, junto com chapéus, flores, vestidos de bolinhas, ​mantillas e saias de frufrus exuberantes.

Aprender a manejá-lo é toda uma arte maravilhosa e complexa (que o diga eu, que mais mato mosquito que bailo bunito nas minhas aulas de sevillanas, acompanhada de um bando de señoras mayores ágeis e graciosas).

E, voltando ao tema do calor, é útil. Eu mesma tenho três: um que ganhei de um festival de música pré-pandemia, outro que comprei em Sevilha (por dois duros, no te creas) e outro de uma banquinha no agitado metrô da Plaza Catalunya, em Barcelona.

Deixo aqui um tutorial de uma profe de flamenco que m'encanta. Peguem seus abanicos y a bailar (ou ligar**), mamones!

*vento norte que sopra do mar na costa da Catalunha e do sul da França
​**flerrrtar

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