Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Corridas de touros, Zara, butecos: Hemingway (também) esteve aqui

Na Espanha, é época de Sanfermines, as festas taurinas que tanto amava o escritor

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Ernest Hemingway é uma espécie de piada interna entre mim e meu namorildo catalão.

Segundo sua teoria, o escritor-aventureiro esteve em toda parte. Mas TODA mesmo.

A gente entra num buteco empoeirado numa parte perdida da Espanha e:

-- Olhaí, Susana. Hemingway esteve aqui, sentado naquele banquinho, tomando um orujo (aguardente de uva e ervas típico da região da Galícia).

Pouco a pouco, a piada foi escalando.
-- Hemingway esteve na semana de promoção da Zara.
-- Passou por essa estradinha de terra e cuspiu naquele cacto. Certeza.
-- E provou essa tapa de tortilla de patatas do Bar del Pollo. Por isso é tão famosa desde 1993 (que não é só o Elvis que não morreu).

(H. esteve no Bar del Pollo com a Rosalía, claro --e por isso a tortilla viralizou)

Sei, soa a bullying post-mortem. Sinto muito, adoro seus livros etc. Mas o que somos eu e o namô diante do Poder do Infinito? Seguramente, a esta altura o Ernesto estará em outra parte do Paradáis dando de ombros, pescando trutas e chupando mojitos, indiferente às orelhas quentes.

E talvez, mas só talvez, por conta do que contarey adiante, detenha por um momento a mastigação-de-folhinhas-de-menta pra me lançar uma desprezolhada de soslaio (adoro essa palavra, soslaio, que me lembra chá de losna, o que por sua vez me faz lembrar que Hemingway adora chá de losna com uísque).

***

SANFERMINES, AS FESTAS ESPAÑOLAS QUE H. TANTO AMAVA

É o seguinte. Aqui na España profunda, estamos em plena época de (((calor, muito calor, alguém me salve))) las famosíssimas Fiestas de San Fermín.

Acontecem pelo menos desde a Idade Média em Pamplona, capital de Navarra, província vizinha ao País Basco e à terra dos famosos vinhos Rioja. Duram oito dias, de 7 a 14 de julho. E, na última edição pré-pandemia, em 2019, atraíram meio milhão de pessoas, sendo quase metade gringos --notadamente franceses (56%) e americanos (25%).

Você conhece essas festas, ainda que não saiba: o mais característico são as corridas (carreras) de touros.

Multidão vestida de branco e vermelho lota uma rua, observada por muitas pessoas em varandas dos edifícios circundantes
"Encierro" durante as festas de San Fermín, em Pamplona (Espanha), 2013 - France Presse- AFP

Oficialmente chamadas de encierros desde o século 19, há uma a cada dia do festival, de manhã cedo. Cada salida junta de 2 mil a 3 mil pessoas cuja missão principal é correr feito doidas por praças e ruas estreitas com touros chifrudos e francamente não-contentes detrás.

O RITUAL DO ENCIERRO

O ritual é assim. Foguetes 1 e 2 soam às priscas horas da manhã, arrebanhando a multidão buliçosa.

Pouco antes das 8, o centro de Pamplona pulula de fulanos machotes (yes, as mulheres, que não somos bobas, mas às vezes excessivamente coniventes, estamos em geral nos balcões agitando lencinhos) vestidos de branco com suas alpargatas e lencinhos vermelhos no pescoço.

A multidão encomenda a alma a San Fermín, o padroeiro da festa, com a cantilena: "A San Fermín pedimos, por ser nuestro patrón, nos guíe en el encierro dándonos su bendición. Viva San Fermín!!!".

E, BUMBA! O terceiro foguete pressagia a iminente liberação dos bichos, e a excitação é palpável-pulsável em blanco-y-rojo, nas decorações dos balcones, nos gritos de "gora [viva, em euskera] San Fermín!!".

A cada encierro, são liberados doze touros no total, sendo seis brabos ou selvajes e seis cabestros ou mansos, cuja função é guiar e arrebanhar a manada.

Dizem que a origem do festival remonta às feiras de gado medievais. Há registros de corridas de touros na região desde pelo menos os tempos de Carlos II, no século 14.

Detalhe: Um "corredor" não pode percorrer todos os 875 metros da trajetória dos touros --morreria na tentativa, talvez, ou mais seguramente levaria uma bela chifrada.

Em geral, o fulano machote focado em seu rito de machoteza taurina escolhe um dos 7 trechos do "circuito" pra se meter na frente dos touros e sair correndo por su láife junto com uma pequena multidão. O trajeto completo, diz a média histórica, não deveria durar mais do que 03:22 minutos. O que não parece, mas é bastante tempo.

Gente.

FERIDOS, TURISTAS E... CAMBISTAS

Desde que se começaram a registrar os dados, no início do século 20, 16 pessoas perderam a vida nos Sanfermines --a última, um madrilenho de apenas 27 anos, em 2009, com um chifre enterrado no pescoço.

Isso sem falar na média de 41 feridos por edição.

O espetáculo é assombroso, e, sim, há muita polêmica aqui na Espanha sobre o abuso dos animais, estressados, fustigados, acuados pela maníaca horda humana, e o perigo do ritual.

Mas isso não detém o atrativo turístico das festas --e os cambistas.

Na corrida de touros do último dia 07 (quinta) por ocasião do centenário da famosa Plaza de los Toros, coração do festival, um dos 1800 ingressos disponíveis custava entre 60 e 120 euros. Esgotados há dias, passaram a valer ouro na revenda, podendo chegar a 300 ou 400 euros cada. Até as entradas mais baratas, originalmente vendidas por 12 a 40 euros, não podiam ser encontradas por menos de uns 100 euros no mercado negro.

Os sanfermines atraem tanto público que tem gente (e agências) que aluga varanda de apartamento no trajeto por onde passam os touros. São lugares com visão privilegiada, basicamente camarotes privados deluxe, um negócio que começou a se popularizar like creizi mais ou menos lá pelos anos 2010.

Por exemplo: na edição 2022, um lugar privilegiado num balcón na Plaza Consistorial durante o chupinazo (lançamento do foguete inaugural da festa) podia chegar a 800 a 1000 euros pax.

Os que compram uma coisa dessas ooobviamente ou são muy ricos ou, sei lá, a BBC, já que veículos jornalísticos de todo o mundo pagam pra ter uma visão exclusiva do que, no fim das contas, é um dos eventos mais famosos do mundo. A experiência VIP, explica um agente de viagens local, é completada por bifê, champanhe e vinho.

Já pra contemplar alguma corrida de touros da segurança de uma varanda, é possível pagar quantias mais módicas, de 125 a 180 euros. Algumas agências fazem a promô de menores-de-12 não pagam.

Argumenta o agente que todo mundo reclama dos preços balconís, mas acha "normal" que um menú del día (refeição completa, geralmente com entrada e prato principal, bebida e sobremesa) de 15 euros possa passar a 40 durante as festas, ou que um hotel possa cobrar até sete vezes mais por uma noite.

Aye, meu São Firmino.

****

Pois, de volta ao Hemingway, fato fatoso é que essa atmosfera sanguínea, machosa, absurda das fiestas bravas e touradas -- e isso é histórico, não é piada -- realmente atraiu o escritor-jornalista-prêmio-Nobel à Espanha. Não uma, mas uma dezena de vezes. A última, dois anos antes de fazer bumba na própria cabeça (with all due respect, porque isso é tema gravíssimo e tristíssimo).

Hemingway era um tauromaníaco de manual e eternizou essa pasión loka em obras e reportagens, como todo leitor seu sabe, começando em 1923, quando veio pela primeira vez como correspondente do Toronto Star para cobrir uma corrida de touros em Madrid.

Sua relação com as corridas e touradas españolas é lendária, controvertida e, como sói passar com celebs em geral, devidamente acompanhada de seus mil mitos, anedotas --e algumas, só algumas, histórias reais.

Continuará...

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