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Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Espanha avança no estudo terapêutico de psicodélicos

Em 2023, país amplia estudos da fase 3, última antes da aprovação comercial

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Alguns anos atrás, soaria a um spin off de Medo e Delírio em Las Vegas, saga creizidelic dirigida pelo genial Terry Gilliam.

Mas, desde agosto de 2022, a Sociedade Espanhola de Medicina Psicodélica (SEMPsi) é uma realidade -- e um claro sinal de que a revolução, ou "renascimento psicodélico", como vem sendo chamada, está próxima.

Atualmente, na Europa, apenas Holanda e Áustria permitem o uso controlado de substâncias psicoativas em contexto clínico.

Países vizinhos como a Espanha, porém, começam a avançar consistentemente em estudos relacionados a partir de 2023.

Este ano, diversos hospitais e centros científicos do país iniciarão ou ampliarão ensaios clínicos da fase 3, a última antes da aprovação comercial de um novo medicamento.

Trata-se de estudos randomizados, em geral multicêntricos (isto é, ocorrendo simultaneamente em diversas instituições), e envolvem substancial quantidade de pacientes.

A maioria das investigações se centra em psilocibina e 5-Meo-DMT para casos de depressão severa (resistente a tratamentos convencionais) e MDMA (aka ecstasy) para estresse pós-traumático, como já vem acontecendo nos EUA, pioneiro no tema.

Segundo explicou ao La Vanguardia o psiquiatra Óscar Soto Angona, presidente da SEMPsi, "o objetivo [da recém-criada entidade] é divulgar informação veraz, baseada em evidência científica, sobre o uso terapêutico dos psicodélicos, e estabelecer diretrizes clínicas, códigos de ética e boas práticas para a aplicação desses tratamentos na área da saúde".

Angona sabe do que fala. Membro do programa de depressão resistente e investigador do hospital-modelo Vall d'Hebron, em Barcelona, já participou de diversos ensaios clínicos relacionados.

"Até 2028 ou antes", estima, "poderíamos ver a aprovação de MDMA e psilocibina acompanhados de terapia assistida".

A estrela dos novos psicodélicos administrados em microdoses é, sem dúvida, a psilocibina, extraída de fungos do gênero Psilocybe.

Isolada pela primeira vez pelo mítico químico suíço Albert Hofmann no final da década de 1950, esse alcaloide vive um revival clínico-científico desde pelo menos os anos 2000.

O frisson em torno da substância vai muito além das viagens lokas com "cogumelos mágicos" colhidos do esterco de vaca nas montanhas intergalácticas.

Além de resultados promissores em casos de depressão resistente, a psilocibina vem sendo estudada em diferentes países como protocolo auxiliar em anorexia, TOC, ansiedade e até vícios como tabagismo ou alcoolismo.

Paralelamente, iniciativas sem fins lucrativos como o ICEERS, com sucursais na Espanha e Holanda, vêm estudando os potenciais benefícios terapêuticos de outras substâncias psicoativas como a iboga (arbusto africano do qual se extrai a ibogaína, empregada, por exemplo, em casos de desintoxicação da metadona) e ahayuasca.

"O ácido lisérgico (LSD) também está sendo estudado, mas há poucos ensaios em andamento porque seu mecanismo de ação é muito parecido com o da psilocibina e é mais complexo. Mesmo assim, existem estudos muito preliminares de LSD para fibromialgia, Alzheimer ou dor crônica", observa Soto.

O especialista, como outros referentes na área, frisa que os resultados são alentadores e que "essas substâncias não são aditivas no âmbito clínico ou terapêutico", mas que é preciso realizar um trabalho educativo para que público em geral e pacientes entendam riscos e benefícios em cada caso.

"São substâncias (...) que requerem um entorno adequado e acompanhamento psicoterapêutico controlado", alerta outro colega de Soto, Santiago Madero, psiquiatra do Hospital Clinic de Barcelona. Além do mais, nem todos seriam candidatos ideais: as microdoses são, a princípio, contraindicadas em pacientes com transtornos psicóticos e bipolares, por exemplo.

Se aprovados, MDMA e psilocibina não serão os primeiros psicodélicos a ser utilizados terapeuticamente na Espanha: desde novembro de 2022, por exemplo, hospitais podem receitar a esketamina, um anestésico de aplicação nasal derivado da ketamina (também conhecida como cetamina), já legalizado nos Estados Unidos desde 2019 como protocolo complementar em transtornos depressivos graves.

***

Em todo o mundo, o uso terapêutico de psicodélicos não é novidade --até pinturas rupestres de 6 mil anos atestam a presença de fungos Psilocybe na Península Ibérica --, mas a volta paulatina de sua aceitação no meio científico/investigativo e clínico depois do grande boom dos anos 1950-60 e consequente ostracismo nas décadas seguintes, sim.

Desde então, em anos recentes, centros de investigação clínica renomados como o John Hopkins, nos Estados Unidos, e o Imperial College, em Londres, apresentaram estudos que, hoje, são referência na área.

Há um longo caminho, porém, que transcende a questão da validação científica, e que está relacionado a uma mudança de paradigma -- social e clínico -- em torno das terapias psicodélicas.

Pílulas com efeito tridimensional colorido
Terapia psicodélica: em breve, uma realidade? - Reprodução / Pixabay

"Acredito que os psiquiatras espanhóis em geral não estão preparados para prescrever esse tipo de terapia, considerando-a proscrita ou 'alternativa', pois existem muitos preconceitos a esse respeito. No entanto, é verdade que de forma underground as terapias psicodélicas são realizadas em nosso país", diz Helen Dolengevich, psiquiatra do hospital de Henares, em Madri, e autora do livro Novas Drogas Psicoativas.

Estudos, diálogo e informação são, sem dúvida, fundamentais para desfazer mitos e prevenir o uso inadequado de princípios ativos que, tanto quanto curativos, podem ter efeitos negativos se empregados sem orientação ou fora de contexto.

É preciso também regular o mercado para minimizar o risco de que determinadas substâncias psicoativas sejam exploradas comercialmente com falsas promessas milagrosas.

No meu feed de redes sociais, por exemplo, há um tempo saltam aqui e ali anúncios de empresas vendendo "packs" de microdoses como se fossem "chuches" (doces, em espanhol), isto é, com a mesma facilidade com que eu poderia comprar calcinhas na promoção online.

Como sempre assinala Marcelo Leite em sua coluna Virada Psicodélica, na Folha, é importante lembrar que o uso terapêutico de psicodélicos segue em estudo e deve ser adotado sob decisão e supervisão médica.

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