Quadro-negro

Uma lousa para se conhecer e discutir o que pensa e faz a gente preta brasileira

Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo
Descrição de chapéu jornalismo mídia

Terraplanismo anti-identitário

Publicar fake news contra o identitarismo avaliza crimes de ódio contra minorias

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Em Nilópolis, município da baixada Fluminense onde passei parte da minha infância, era famoso um senhor que passava as tardes encostado no balcão do bar com a cara emburrada de quem perdeu relevância, e jeito de quem culpava os outros por seus fracassos. Ali, ele observava um mundo que se movia em transformação, e em seu íntimo sabia que era algo sem volta. E odiava.

Fenda em parede coberta de sangue
Registro da performance 'Dra. Diva', de Juliana Notari, de 2006; nela, a artista abre fendas na parede com ajuda de martelo e escopo e depois as banha em sangue de boi - Divulgação

O dia inteiro, o homem então grunhia comentários misóginos para as mulheres que passavam na rua, homofóbicos com os homens pouco viris que caminhavam na calçada, xenofóbicos com pessoas diferentes dele, gordofóbicos com quem estava acima do peso, e racistas com gente de pele preta.

Quando íamos ao bar para comprar chicletes, o senhor frustrado nos contava a lenda da Kombi que levava crianças. Um veículo que, de madrugada, passava na rua e raptava as crianças que desapareciam para sempre. A lenda tornou-se crença.

Obviamente, a história fantasiosa e seu contador frustrado ganharam fama no bairro. E assim, ele encontrava para si enfim alguma utilidade. Espalhar crenças para incautos.

No domingo passado, 16 de janeiro, a Folha de S.Paulo publicou um artigo em que um acadêmico que nas últimas décadas perdeu relevância defende a lenda do racismo reverso de negros contra brancos. Uma publicação essencialmente anti-identitária.

Obviamente, a história fantasiosa e seu contador frustrado ganharam fama no bairro.

Os fenômenos do identitarismo e do anticolonialismo são as boas novas deste século 21. Mas custamos a entender que as reações a esses fenômenos não ficarão apenas nos mimimis dos intelectuais frustrados por conta dos novos tempos terem revelado sua anemia acadêmica.

A reação ao identitarismo é tão antiga quanto o colonialismo. E vai do macro ao micro. Do estrutural ao cotidiano. No século 16, forçar nativos brasileiros a falarem a língua do invasor foi uma ação anti-identitária. Séculos depois, queimar vivo o índio Galdino enquanto ele dormia em um ponto de ônibus na cidade de Brasília, também.

Na mesma semana em que a Folha publicou o texto anti-identitário que ficou famoso no bairro, um homem da mesma geração do autor do texto, matou, no município de São Gonçalo (RJ), a ex-esposa a marretadas na frente da filha de 12 anos porque sua crença era de que esposas pertencem aos maridos.

Uma semana antes, a podcaster brasileira que nas redes sociais ofereceu vaga para mulheres negras foi atacada nas redes por brasileiros que a chamaram de nazista da África.

Desde que Edward Enniful foi empossado editor-chefe da Vogue Britânica, Adriana Ferreira Silva, redatora-chefe da Marie Claire Brasil, e Samantha Almeida, diretora de criação de conteúdo dos Estúdios Globo, nunca mais ali deu-se espaço para histórias como Kombis que sequestram crianças. Você já adivinhou a cor desses chefes que parecem melhor entender o mundo hoje do que os anti-identitaristas.

Esses chefes que não relutaram em assumir a liderança, mesmo sabendo que dentro mesmo das instituições encontrariam resistência, reações, seja a marretadas corporativas, ou fogo em caso de um cochilo na gerência, xingando muito no Twitter, ou passando a vida encostado em balcão de bar, colocando a culpa de sua irrelevância nos outros e inventando lendas e crenças que ainda dão a ela alguma utilidade e fama.

Na Nilópolis de minha adolescência, ao lado do bar havia uma banca de jornal. Nela, a vizinhança consumia jornais de papel. Lia-se neles coisas como: "Sobre a pedofilia. Muitos meninos gostam e seriam frustrados se algum adulto não se aproveitasse deles." [1] Um ano antes, em 1990, a Folha publicava as seguintes aspas de Francis: "A descoberta do clarinete por Mozart foi uma contribuição cultural maior do que a África toda nos deu." [2]. A Folha também publicou, em 1990, a ideia do sujeito a respeito de mulheres. "Mulher com cara de inocente lembra nossa mãe antes de ser violada pelo nosso pai. Mexe com o Édipo dos homens." [3]; Mulheres são essencialmente irreligiosas" [4]; "O número de mulheres que quer conquistar a bala seu homem ou reage a uma rejeição, como Mia Farrow, aumenta a olhos vistos". [5]

Essa verdadeira várzea intelectual era esperada pelo de uma coluna que confirmava o quanto o Brasil era (ainda é?) jeca. Diário da Corte trazia as palavras de Paulo Francis, o maior influencer do jornalismo intelectual brasileiro por décadas. Ganhava muito bem, desfrutava de admiração e respeito. Escrevia esse e um sem número de aberrações, impunemente.

Francis, um crítico do politicamente correto e da cultura do cancelamento (obviamente era na época outro nome que se dava à críticas feitas aos privilegiados) já se foi. Mas seu tempo sobrevive, ainda que débil, derretendo-se, agonizando em artigos como o publicado pela Folha, que já não passam mais batidos em 2022.

Abaixo-assinados de organizações tanto de gente preta como de judeus, como o grupo Judeus Pela Democracia, comunidade de 11 mil pessoas no Facebook, foram enviados à Folha, em desagravo à publicação irresponsável do texto de Antônio Risério. Essa indignação dos responsáveis nunca teria acontecido nos tempos de Paulo Francis. O mundo melhora.

Em Nilópolis, não existe mais a banca de jornal ao lado do bar. Por todo o Brasil, agora, a venda de jornais se concentra nas áreas ricas das cidades onde a lua brilha sobre uma terra plana e os ricos têm suas crenças alimentadas pelo que leem; conteúdos publicados com o propósito de os evitar fazerem entender em que ano estão, que relevância econômica não é relevância cultural e que há um mundo aqui fora se transformando, melhorando, e que para isso não há mais volta.

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O articulista errou ao atribuir à Folha de S.Paulo a publicação de Francis a respeito de pedofilia. Foi o jornal O Estado de S. Paulo o veículo que publicou esta aberração. Pelo equívoco, peço desculpas.

Segue o índice das fontes de onde vieram as aspas de Francis que estão neste texto e foram publicadas tanto pela Folha quanto pelo Estadão, nos obscuros anos em que Francis gozava de reputação.

[1] Publicado em O Estado de S. Paulo, no dia 21 de outubro de 1993. Fonte: Waal - O Dicionário da Corte de Paulo Francis - Organização, Daniel Piza. Ed. Companhia das Letras, 1996, pág 209

[2] Publicado em Folha de S.Paulo, no dia 24 de maio de 1990. Fonte: Waal - O Dicionário da Corte de Paulo Francis - Organização, Daniel Piza. Ed. Companhia das Letras, 1996, pág 190

[3] Publicado em Folha de S.Paulo, no dia 2 de abril de 1988. Fonte: Waal - O Dicionário da Corte de Paulo Francis - Organização, Daniel Piza. Ed. Companhia das Letras, 1996, pág 190

[4] Publicado em Folha de S.Paulo, no dia 4 de outubro de 1990. Fonte: Waal - O Dicionário da Corte de Paulo Francis - Organização, Daniel Piza. Ed. Companhia das Letras, 1996, pág 190

[5] Publicado em O Estado de S. Paulo, no dia 10 de janeiro de 1993. Fonte: Waal - O Dicionário da Corte de Paulo Francis - Organização, Daniel Piza. Ed. Companhia das Letras, 1996, pág 190

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