Quadro-negro

Uma lousa para se conhecer e discutir o que pensa e faz a gente preta brasileira

Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

Filme de Lázaro Ramos é o evento cultural do ano

Marco do cinema nacional, "Medida Provisória" é tão importante quanto votar em outubro

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Lázaro Ramos lança Medida Provisória, seu primeiro filme como diretor. - Divulgação

Foram 122 anos de espera.

Em 1898, o ítalo-americano Afonso Segreto trouxe uma filmadora para o Brasil e filmou 'Uma vista da Baía de Guanabara'.

Supostamente, foram as primeiras imagens registradas em território brasileiro.

Nascia ali, a história de nosso Cinema.

Nosso de quem?

A história do cinema brasileiro é marcada por ser a história de brasileiros homens brancos com câmera na mão, e críticos homens brancos, com caneta na mão, resenhando o trabalho de homens brancos.

(Em um país onde há mais pretos do que brancos.)

Uma vertigem que se realiza por conta de um fazer velho, colonizado, e um olhar velho, colonizado.

Pessoas pretas que puderam manipular uma câmera, construíram, até hoje, uma história menos colonizada. Bulbul. Joel Zito. Odilon Lopez.

Mas, ainda assim, não tínhamos filmes onde a maioria das pessoas na frente e atrás das câmeras fossem pessoas pretas.

Até hoje. 122 anos depois.

'Medida Provisória', filme de estreia de Lázaro Ramos na direção, é uma estreia de uma representação inedita de nosso país.

A começar pela desconstrução da representação do corpo negro em tela. Há um grupo de artistas negros, no Brasil e no mundo, que não querem mais representar corpos negros sangrando. Mesmo que o mercado queria personagens negros para papel de polícia, bandido e miserável. 'Medida Provisória', desde já, é um presente para jovens realizadores que, neste momento, estão tentando defender seus projetos para patrocinadores, empresas de stream e produtoras, sem conseguir convencê-las de que é possível realizar boas histórias com personagens negros de classe média e, sobretudo, é possível filmes violentíssimos sem precisar derramar uma gota de sangue.

A segunda novidade que o filme de Lázaro Ramos traz é uma reconstrução da imagética do sudeste. O filme, dirigido por um baiano, escrito por baianos, baseado na peça teatral escrita por outro baiano, parece se passar em uma cidade sudestina. Rio e/ou São Paulo.

Uma cidade pesadelo, descolorida, triste, habitada por brasileiros pálidos, assustados e lotados de ansiolítico. Trabalho primoroso da direção de arte e fotografia, que faz de 'Medida Provisória', filmado no Rio de Janeiro, parente visual de 'Laranja Mecânica', em que Kubrick transformou os subúrbios de Londres de 1971 numa cidade futurista, e 'Alphaville', no qual Godard transforma os arredores de Paris 1965 em uma locação noir século XXI.

Nesta cidade sudestina, as únicas pessoas que parecem saber como ser felizes sem tomar Frontal são as pessoas pretas. Logo, o governo irá propor que todas elas, e suas descendentes, sejam expulsas de volta para a África. Algumas pessoas pretas, cientes do quanto nosso país nos trata, acham até boa a opção. Outros, não. Entendem que este país é nosso também. Que construímos eles juntos, como que constrói uma ponte que balança ao vento,.

Construção conjunta. São muitos os atores brancos em cena, todos brilhantes. Mas o que faz o trio de protagonistas é o tipo de coisa capaz de elevar nossa crença no que pode vir por aí.

Em chamas, está o doce Alfred-Enoch, ator preto-britânico-brasileiro (considerem os hífens pontes metafóricas). O seu percurso entre a doçura e as chamas é o centro dramático do filme. O orgulho de ser brasileiro que seu personagem tem é, em tempos de patriotismo tosco-conservador, um presente.

Seu Jorge, aqui, está ainda mais afiado do que em Marighella. Se outros diretores nunca perceberam que seu sorriso é sua maior arma, Lázaro não deixou passar. Seu Jorge, e seu personagem, é esperança que brilha no meio do desespero. E espécie de voz da razão no fime.

Faz o papel de um jornalista negro. Destes que ri quando lê um dos muitos artigos com perfume racista que se vê por aí.

E Taís Araújo. Em sua mais completa atuação, um degrau em uma carreira que parece não conhecer limites. Faz o papel de uma cirurgiã destas que nos jornais viram notícias quando são desacreditadas por pessoas brancas. Taís dá tanta vida a seu personagem, dá tanto Méier (bairro onde foi criada), que presta ao filme um jeito, também, de documentário.

Em certa cena, quando a personagem de Taís dança em seu apartamento, e pensamos que vamos ver algo como o brilhante 'Lovers Rock', de Steve McQueen, (produção da BBC de 2020 que deslumbrou o mundo com a recriação de cenas de jovens negros do subúrbio de Londres dançando nas festas que iriam, nos anos 60, dar origem ao Reggae), Lázaro subverte as expectativas, fecha o plano, e trabalha com a profundidade de campo, de modo a asfixiar-nos (linguagem que será inteligentemente adotada ao longo do filme).

O espectador ao mesmo tempo próximo daquela criatura maravilhosa que dança e sorri devagar, mas distante, separado por algo terrível e invisível, algo desgraçadamente brasileiro, ou desgraçadamente sudestino, algo que só o trabalho construído por uma equipe que se interessa muito pelo Brasil pode provir. A materialização de como é viver em um país racista materializada na própria linguagem do filme.

'Medida Provisória' também estreia com a fama de suas inúmeras participações especiais. Antes da pandemia, uma das maiores avenidas do Rio de Janeiro foi fechada para que as muitas centenas de convidados pudessem filmar certa cena climática. O resultado é grandioso e lembra os versos do Public Enemy, em 'Fear of a black planet' (Medo de um planeta preto).

O Brasil tem medo do país preto que é. Mas o filme de Lázaro e equipe é feito também para pessoas brancas destemidas. O que possa existir de assustador no filme, é metabolizado por figuras como Emicida e, principalmente, a grande revelação do filme: a professora Diva Guimarães que, com seus mais de 80 anos, tem uma presença de tela que nos acolhe e nos dá a força necessária para seguir em frente.

E o que há pela frente? Tudo o que quisermos com força, diz o filme.

A medida é provisória.

Com 122 anos de atraso, o trabalho de Lázaro e equipe inicia uma nova história de nosso cinema. Por isso, já é um marco nacional.

Este marco ser um filme espetacular o qualifica como imperdível.

O fato de um marco do cinema, filme espetacular, qualificado como imperdível, estrear em ano eleitoral, e em eleições divisivas, diria intra-diaspóricas, iguala a ida ao cinema nos próximos dias à ida às urnas em outubro.

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