Quadro-negro

Uma lousa para se conhecer e discutir o que pensa e faz a gente preta brasileira

Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

Cafuné no estômago

Noite com Chimamanda e Djamila no Maracanãzinho ocorreu em um mundo que (re)volui

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Chimamanda Adichie
Chimamanda Adichie - Victor Ehikhamenor

Noite histórica no Rio de Janeiro. No último sábado, 14 de maio, uma multidão lotou um estádio para ouvir a conferência de uma escritora negra, mediada por outra escritora negra. Os ingressos para a conferência "Contando histórias para empoderar e humanizar", dada pela nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie e mediada pela brasileira Djamila Ribeiro, esgotaram-se em menos de uma hora de venda.

Isso, no país que vinha mobilizando multidões apenas para eventos como motociatas de homens brancos e assustadíssimos com a possibilidade de perderem hegemonias e protagonismos.

O evento de Chimamanda com Djamila fez parte do evento literário LER - Salão Carioca do Livro. No mesmo evento, Rita Von Hunty , Drag Queen e youtuber, também causava frenesi.

Eventos culturais no Brasil no anos 80 e 90 eram uma várzea, um samba de uma nota só (a própria canção de Tom Jobim é uma repetição em loop da introdução da canção Night and Day, de Cole Porter). E já foi escrito aqui como eram as vitrines das livrarias até meados da primeira década deste século. Só homens brancos, predominantemente héteros.

Não que o mundo nunca tivesse sido diverso. Antes da normatização do mundo imposta pelo Iluminismo, todos existiam, não de forma harmoniosa, porque o conceito de harmonia como conhecemos também nos foi imposto.

Decolonizarmo-nos, é redescobrir que o que chamamos de caos é o suco da vida, e se a vida nos parece um soco no estômago, e ao mesmo tempo um cafuné, é assim que é. É assim que sempre foi.

Um grupo de jovens que organiza uma roda de slam poetry numa praça de rua em Vila Isabel, subúrbio do Rio de Janeiro, não conseguiu ir ao evento de literatura no qual Chimamanda deu sua conferência por conta de uma guerra de facções na comunidade em que vivem. O fim de semana deles foi de ficar em casa lendo ao som de tiros de armamento pesado e helicópteros passando por cima da cabeça.

Estes jovens poetas, para quem tiros e helicópteros já são sons normalizados em seus ouvidos são, para além da tragédia, o que há mais moderno e sofisticado. O próximo grau de (re)volução, no sentido de retorno a um tempo anterior, após Chimamandas. E eles chegam ao mundo no momento no qual Milton Nascimento, preto velho nos sentidos mais distintos, anuncia sua aposentadoria. Este suco maior em forma de gente pode finalmente desacelerar e ser espectador desse novo mundo que reúne slam, drag queens, escritoras pretas de sucesso, entre sons de tiros e helicópteros.

Este novo mundo improvável, cafuné no estômago, está colecionando suas noites históricas e apontando para o futuro ancestral, pedra hoje atirada no pássaro de ontem. Mas há o que melhorar, sempre. Travessia, como canta Milton Nascimento. Se a festa de literatura que trouxe Chimamanda houvesse ocorrido na comunidade em guerra no bairro de Vila Isabel, guerra lá não haveria. O entendimento de que os eventos culturais devem, por regra, acontecer dentro comunidades pelo Brasil, não é, como deveria ser, condição de políticas públicas.

O mundo velho ainda provável grita e se debate contra as improbabilidades. Enquanto isso, (re)voluimos.

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