Quadro-negro

Uma lousa para se conhecer e discutir o que pensa e faz a gente preta brasileira

Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

Showrunner de série inédita da Netflix sobre chacina da Candelária escreve sobre Vila Cruzeiro

Cineasta Luis Lomenha, ex-morador da região, escreve sobre o significado de uma chacina

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Amigos e familiares de mortos na Operação da Vila Cruzeiro, na porta do hospital Getúlio Vargas, na zona norte do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli/ Folhapress

Quando recebi o convite de Luis Lomenha para fazer parte do time de roteiristas da série de ficção "Candelária", baseada na história real da chacina da Candelária, que ocorreu em 1993, já em produção pela Netflix, imediatamente fiz o convite de volta, para que ele um dia escrevesse para o Quadro-negro. O motivo? Luis, por ser cria da periferia do Rio de Janeiro, é um sujeito comprometido com a missão de não nos deixar esquecer que lugares periféricos são cheios de vida, cheios de humanidade.

Cada vez que acontece uma chacina, como a de ontem na Vila Cruzeiro, os mortos são gente. Os bairros afetados, as pessoas que moram neles, são gente. Todos os textos sobre a chacina da Vila Cruzeiro que você leu, por melhor intencionados, trataram do assunto usando números, estatísticas, macropolítica. Esquecem da vida que há ali. Luis, não. Luis está vivo.

Sinto por nossos velhos - por Luis Lomenha (cineasta e showrunner da série "Candelária")

No século 19, negros escravizados libertos se aquilombaram em um morro na zona norte da cidade. O lugar ficou conhecido naquela época, como quilombo da Penha. Situado na região da Serra da Misericórdia onde ficam Vila Cruzeiro e outras comunidades do hoje famoso Complexo do Alemão.

Lá, nas minhas memórias afetivas, estão longas travessias de domingo para famoso parque de diversões Shanghai. Na Penha, Olaria, Bonsucesso e Ramos, até a metade dos anos 1990, havia cinemas de rua em pleno funcionamento.

Tinha também o Cacique de Ramos e a Imperatriz Leopoldinense –duas das minhas grandes paixões da época que lá estão até os dias de hoje– os clubes do Bonsucesso e do Olaria, o Kuka’s lanche, Elite Calçados e as duas lojas do Bob’s em plena Avenida Brasil.

De lá, bastava atravessar a Favela da Maré e logo estávamos na ilha do governador rumo a praia da Bica. Sem dúvida, a vida nestes bairros encantava a nós Inhaumenses a ponto de muitos sonharmos viver lá.

Gostávamos de caminhar, entrar pela Fazendinha, passar pelo loteamento , cruzar Nova Brasília e Grota , andar mais na serra até descer a Vila Cruzeiro. Estava tão acostumado com estas idas e vindas que, muitas vezes, chegava a acreditar ser mais rápido que esperar o ônibus CTC empresa pública que operava o trajeto na época.

A região ainda possuía até o fim do século passado pequenas áreas rurais. Lembro da minha tia Isabel, que vivia na Fazendinha de Inhaúma. A tia tinha um quintal muito fértil, com muitas frutas , legumes , verduras e cabras . Sua barraca na feira da Rua Dona Emília , era muito procurada por famílias atrás das maravilhas do leite caprino.

Eu sempre desconfiava que Tia Isabel era um tanto fã de Policarpo Quaresma personagem de Lima Barreto, pois mesmo depois do "triste fim" daquele engenhoso homem na literatura , a tia ainda seguia afirmando : "aqui plantando, tudo dá."

Mas os antigos diziam que assim era a Serra da Misericórdia. Meus pais mergulharam no rio Faria Timbó, meus avós falavam das nascentes no alto da Serra, elas formavam uma bela lagoa de água cristalina aos arredores da pedreira . Durante muitos anos a lagoa foi a praia de muitas gerações, sou feliz em ter mergulhado lá. Os velhos pretos da região reconheciam os encantos da Serra, como um legado do Quilombo da Penha, a exuberância da natureza local e as manifestações culturais da região, eram sempre pauta das conversas que escutei durante anos, quando ainda criança sentado em uma "Enì" do Ilê de Tata Ogum.

Hoje, a região cresceu e seus mais de 180 mil habitantes vivem em comunidades como a Vila Cruzeiro, palco da segunda operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro. Já são 22 vítimas fatais. Mais uma ação irresponsável das forças de segurança do estado, que segue aperfeiçoando sua máquina de exterminar homens pretos. Sinto pelas vítimas e familiares desta barbárie, sinto também por nossos velhos ancestrais, que tanto lutaram por paz e liberdade.

Que Olorum poupe os velhos de verem, que o mesmo inimigo voltou sem disfarces, debochando dos nossos mortos e aumentando a cada dia o poder sobre nossos corpos.​

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