Quadro-negro

Uma lousa para se conhecer e discutir o que pensa e faz a gente preta brasileira

Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

Cinema brasileiro perde jovem mestre

O premiado diretor de arte Tiago Marques foi inspirador de uma fase do audiovisual que lutamos para que se inicie

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Homem negro com chapeu e óculos sorri
O premiado diretor de arte Tiago Marques - Arquivo Pessoal

O comportamento de tudo, e o comportamento do todo, são fluidos. Desrespeitar a fluidez dos acontecimentos é não entender a glória da existência.

As coisas existem assim: em fases. Uma coisa vai embora para dar lugar a outra, que finca raízes por tempo limitado até que outras coisas venham ocupar o lugar. É assim que as coisas pioram, é assim que as coisas melhoram.

A arte é o que até hoje o ser humano inventou de mais próximo a um método de exercer fluidez. Pintura se realiza a partir da sequência de partes dela que vemos. Música se realiza a partir de uma nota que vem depois da outra, que vem depois da outra, que vem depois da outra. Cinema é a sequência do que vemos em cada um dos 24 quadros.

No século 21, o cinema brasileiro entrou em nova fase. A fluidez dos acontecimentos fez profissionais de gêneros e cores de pele que não tinham a oportunidade de fazer seus filmes colocarem no mundo obras que estão nos fazendo enxergar o Brasil, e nós mesmos, de uma forma diferente do que o que se fez até aqui.

Tiago Marques, 49 anos, mineiro, diretor de arte premiado, responsável pelo sucesso de muitos destes filmes, faleceu neste sábado (13) de um ataque cardíaco.

Tiago é um dos principais inspiradores de uma fase do cinema brasileiro que estamos lutando para entrar.

Muito de sua competência pode-se explicar pelo novo tipo de diretor de arte, um novo tipo de gente, que surge nesta nova fase do cinema brasileiro. Aquele que se envolve com a rua. E com tudo o que na rua há, especialmente gente. Gente para conversar, gente para abraçar, gente para ouvir, gente para beber, gente para rir com, gente para chorar com. Pessoas viciadas em gente se nutrem na rua e estão sempre atentas à retribuir o que as ruas lhes dão.

Tiago era apaixonado em especial pelas ruas do Rio de Janeiro, em uma época em que a maioria dos artistas bem-sucedidos da cidade têm medo delas. Medo de sair de casa, de perder o celular, de ter que conversar com desconhecidos, de descobrir o véu que as protege do mundo.

Esta nova safra de diretores de arte está trazendo para o Brasil um outro modo de ver-se e representar-se na tela.

Nas redes sociais, o que se viu durante o dia foram outros artistas do meio, todos deste novo cinema brasileiro porvir, lamentando o encantamento de Tiago (a ideia hegemônica de morte em países colonizados é simplória, e inventada recentemente, por europeus). Dos já estabelecidos, como Rodrigo França e Lázaro Ramos, a um sem fim de gente muito jovem que está começando, comentando como Tiago estava os ajudando neste começo de carreira onde fazem de tudo para que pessoas pretas nasçam natimortas.

Diretor de arte de filmes como "Medida Provisória" e novela da Globo "O Outro Lado do Paraíso", Tiago estava em momento profissional tão intenso que emendava um trabalho no outro. Enquanto isso, emendava, também, uma vivência da cidade do Rio de Janeiro na outra. Um pulo na quadra da Portela, um corre para não perder um papo no outro lado do túnel.

Neste momento, fazia a direção de arte da série "Candelária", para a Netflix, que tive a honra de participar da equipe de roteiristas, todos pretos, e que estreia em 2023. A arte que Tiago elaborou para as filmagens da noite de sábado foi a de replicar uma festa no centro da cidade, um baile charme só com personagens e figurantes pretos. Foram muitas horas de trabalho, mais de cem figurantes dançando música preta. Muita cor, muitos sorrisos, muita gente preta empregada recebendo salário por seu talento. Não se pode imaginar nada mais bonito para o que queremos para o Brasil. Talvez não haja outro caminho, outro rio que não flua para outro lado.

Não se sabia, mas o baile fluxo de celebração preta era o baile de despedida de Tiago.

Logo ele, que havia entendido muito bem o baile que a vida é. Gente, ritmo, sincronia, suingue e, principalmente, suor, princípio, meio e fim.

Por isso, neste domingo (14) não houve velório, destes do tipo ocidental. Um Gurufim, "festa com samba", foi marcado para 9 da manhã no MUHCAB - Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira, no bairro da Gamboa, zona portuária do Rio de Janeiro.

Para, entre outros sambas, cantar-se "Eu vou fingir que morri / pra ver quem vai chorar por mim / E quem vai ficar gargalhando no meu Gurufim/ E ver quem vai tomar minha cachaça / E quem vai tomar o meu café." ("Meu Gurufim", de Cláudio Camunguelo). E assim será a despedida.

Despedida do quê? De quem? Essa coluna, o Quadro-Negro, tinha a honra de tê-lo como leitor assíduo. Seus comentários vinham sempre no privado, por Instagram. Na última mensagem registrada, ele escreveu "queria poder estar em todo lugar".

Agora, desencantado do corpo, Tiago está liberado para estar em todo lugar. A vida é uma medida provisória, e o outro lado da vida é onde uma coisa acontece depois da outra depois da outra de um modo mais doce.

Despedida do quê? As artes são antigas. Pintura, escultura e música foram inventadas, na África, à 60 mil anos, o cinema não tem nem 150 anos. O cinema ainda não começou. Mas está começando. Tiago, sua obra e seu legado profissional e humano (e seu modo de enxergar a relação entre profissão e humanidade), são novidades.

Mais do que uma perda, estas pessoas-novidade são bem-vindas. Madrinhas de um parto poderoso e irreversível.

Mas temos direito ao luto. Ainda são poucos os profissionais negros que estão no mercado para que ele de fato evolua.

Temos direito ao luto. Em um país onde a arte segue sem direção e, no caso da arte preta, sempre esteve impedida de mirar o norte, perder um diretor de arte preto é desnorteante.

Mas Tiago, agora exemplo, agora em todo lugar, há de nos acudir. De nos orientar. De nos dirigir.

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