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Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

Acadêmicas negras explicam por que é impossível lamentar a morte da Rainha Elizabeth

'Não lamente a morte de quem enriqueceu com a morte de seus ancestrais', afirmam

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Nota emitida desde 2016, com o mesmo retrato da rainha Elizabeth 2ª que aparece desde 1990 ORG XMIT: LOCAL2209082054658557 - Banco da Inglaterra/Divulgação

Convidadas para escrever sobre a morte de Elizabeth 2ª, rainha da mais sanguinária monarquia da história, Dra. Katiúscia e Ma. Sônia Ribeiro refletem a respeito da comoção em torno de uma instituição que é responsável por praticamente todos os problemas que hoje a humanidade enfrenta –o imperialismo britânico.

Legados de sangue

Por Dra. Katiúscia Ribeiro ( Drª Fil. Africana, pesquisadora da Universidade de Temple em Chicago); e Ma. Sônia Ribeiro (Socióloga e Mestra em Extensão Rural-UNIVASF)

Duas mulheres negras
A Dra. Katiúscia Ribeiro e a socióloga Sônia Ribeiro - Gabriella Maria (esq. , Afroafeto) e Arquivo pessoal (dir.)

"Como acha que seus ancestrais conseguiram os objetos? Acha que pagaram um preço justo? Ou tiraram de nós, igual tiram tudo que querem [...] Soldados britânicos levaram do Benin, mas é de Wakanda." Killmonger

A cena clássica do filme "Pantera Negra" ilustra com exatidão um dos meios pelos quais foi construída a historiografia da monarquia britânica, o enriquecimento ilícito com o tráfico escravocrata e o roubo de diamantes do continente africano, como "A grande estrela da África" ostentada como símbolo de poder na coroa da majestade britânica.

O trecho do filme aparece neste texto como figura ilustrativa de uma realidade cruel promovida pelos pactos europeus impetrados pela Inglaterra, Espanha, França e depois Portugal, e revelam um ideário moldado nos valores absolutos, que atravessaram séculos e referendam um modelo de pensar na contemporaneidade.

O legado monárquico que incidiu no Reino Unido, pactuado com todos os países europeus que traçaram um sistema de dominação aos povos fora dos modelos sociais organizativos e estéticos, não compreendidos pela Europa como povos civilizados, identificados pejorativamente como povos do terceiro mundo (Ásia, África, América latina e central). Um projeto colonizador de exploração, alienação e expropriação de riquezas materiais e humanas, bem como a imposição de uma euro-episteme de controle e dominação mental.

Falar sobre a morte física da Rainha Elizabeth 2ª é falar de um contínuo legado colonial de exploração, dominação e manutenção de poderes que estruturam o racismo moderno e as violências do capital. É tocar nesses pontos e compreender que o legado da rainha é uma ideia que permanecerá por séculos e é sensível e aceitável por uma sociedade de controle que tem como projeto a dominação de corpos humanos descartáveis para as indústrias do mercado.

Precisamos retirar as máscaras de castidade da promíscua sociedade ao redor do mundo, que insiste em criar uma figura dócil e gentil da rainha, que continuará mascarando as estruturas de violências da monarquia e que, diante de qualquer ameaça ao seu reino e seus súditos, não hesitará em retomar a busca de riquezas em qualquer país emergente para continuarem alimentando seus mercados internos e dos seus aliados.

É preciso denunciar os mitos permanentes que figuram sobre a imagem da família real que nunca existiu. Precisamos entender que o pacto soberano invisibiliza os símbolos de violências, explorações econômicas, culturais e sociais e os apoios a diversos golpes de estado ao redor do mundo. É algo que é recorrente e reincidente no pacto narcísico da branquitude e parte de um projeto político que insurge em poder soberano, banhado de opressão, massacre e exploração feitos pelo Império Britânico, chefiado pelo Rei George 6º e herdado por Elizabeth 2ª.

Serra Leoa (27/04/1961), Gana (1957), Nigéria (1960), Togo (27/04/1960), Sudão (1956), Uganda (09/10/1962), Tanzânia (1961), Quênia (12/12/1963), Zâmbia (24/10/1964), Maláui (1964), Zimbábue (1980), Botsuana (30/09/1966), Suazilândia (1968) e Lesoto (04/10/1966), África do Sul, compõe a lista de países que sofreram com colonização e exploração com o domínio britânico.

Como podemos observar, as datas de suas independências demonstram a durabilidade deste período de obtenção, sem mencionar o apoio financiado ao regime de Apartheid na África do Sul, ao regime de segregação racial no Quênia –durante a guerra de independência nos anos 1960, pessoas eram mutiladas e torturadas com machados por se levantarem contra os britânicos na exploração de minérios e outras sucessões de violências, que impactaram a estrutura cultural, humana, politica, econômica e as reservas ambientais até os dias atuais.

A Europa e seus braços de dominação baseados na ditadura da história única demarcaram uma geografia eurocêntrica e etnocêntrica para demarcar o projeto de invasão e dominação em nome de uma pretensa civilidade. Nada é dito sobre a exploração e o enriquecimento ilícito construídos pela monarquia britânica; ao contrário, é vendida a mentirosa imagem sobre o poder monárquico. A venda desta imagem é perigosa.

A monarquia ameaça a liberdade de todos, por isso é legítimo apelar contra ela, destituindo a ideia maquiavélica da soberana boa, compreendendo que esses reflexos do absoluto, legitimados por uma cientificidade cartesiana, desenharam e plastificaram o pátrio poder cristão e patrimonialista que edificou e protegeu os ideários capitalistas. A expansão da Europa na colonização e pós-colonização projetou sua continuidade através de perspectivas euro-referências, em que a colonialidade foi fundamental na preservação de uma epistemologia centrada em um único saber.

Talvez, nosso único lamento é que em vida a rainha Elizabeth 2ª e seu governo britânico não pagaram pelos crimes cometidos contra as colonizações econômica, social e mental da humanidade, nas quais sofremos com as sequelas na atualidade enquanto lamenta-se sua morte.

Não lamente a morte de quem enriqueceu com a morte de seus ancestrais.

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