Quadro-negro

Uma lousa para se conhecer e discutir o que pensa e faz a gente preta brasileira

Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

Como seria o mundo hoje se não houvesse existido a colonização europeia

Um conto passado em um universo alternativo onde nunca houve a invasão de países por europeus

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Um coração humano conservado em um pote de formol.
O coração de Dom Pedro I, que declarou a independência do Brasil de Portugal 200 anos atrás, exposto no palácio di Itamaraty, em Brasília. Foto REUTERS/Adriano Machado. - REUTERS

Vamos brincar com esta moda de multiversos. Realidades alternativas. What if. E se. Ser ou não ser. Tupi or not Tupi. Imaginem um planeta Terra alternativo, onde Cabral nunca chegou ao Brasil. Onde Colombo nunca chegou às Américas. Onde não houve o tráfico de escravizados da África para estes continentes. Onde a Europa não saqueou as riquezas de todos os lugares que colonizou.

Difícil é utilizar-se de palavras para contar uma história que se passa neste planeta Terra alternativo, onde não houve colonização europeia. É que neste mundo prevaleceu a ideia de que as palavras, principalmente as que compõem as pobres línguas europeias, não dão conta de descrever bem as coisas do mundo.

Nomear algo, é diminuí-lo. Neste mundo alternativo, onde europeus não impuseram uma só palavra, o princípio nunca foi o verbo. Planeta, pele, prata, mel, clavícula, aorta, alecrim poderiam significar amor, luto, círculo, fezes, chuva, inveja, música, movimento, voz. Foi assim em todas as civilizações intocadas pela colonização. Tudo é sofisticado. Nada é simplificado por definições de poucas letras.

Os habitantes deste planeta alternativo, onde europeus nunca saíram de seu continente, falam muito. A tradição que nele prevaleceu foi a oral. O prazer de escutar o que o outro tem para dizer. Nas ruas da cidade não há sinais nem placas de trânsito. Também não vê-se livrarias ou farmácias. Não há livros ou remédios nesse mundo não colonizado.. Não há leis escritas e provavelmente por isso há uma orgânica atenção para os fluxos da vida. Estar aberto a acasos e erros é uma das prerrogativas para viver uma vida satisfatória neste mundo tupi or not tupi..

Os habitantes deste mundo que escapou da tragédia da invasão européia, não têm medo de quase nada. Têm respeito. Principalmente por fluxos como, por exemplo, a menstruação das fêmeas da espécie humana. Em cada esquina de cada cidade do planeta inteiro, há pontos de distribuição gratuita de absorventes. Decisão tomada no século 19, pelas presidentas dos países deste planeta que safou-se de europeus.

Não se vê guerras há muitos séculos. As últimas aconteceram justamente no continente europeu, hoje o mais pobre do mundo. Sua população miserável, distribuída em países que não contruíram riqueza às custas do roubo do ouro de países africanos ou sul-americanos, vive sobre um solo estéril, e as centenárias guerras tribais que ainda lá acontecem dizimaram 80% de sua população. Todos os dias chegam de lá barcos com refugiados a países prósperos.

Como o Brasil.

Ivy chegou na casa de Dida e Didá no fim de uma tarde de abril trajando uma camiseta velha com a estampa de uma santa católica europeia no peito. A santa era uma figura triste, com um manto na cabeça baixa. Diferente das divindades adoradas no mundo, cuja representação gráfica era quase sempre de nudez, sorriso no rosto e contato com a natureza. O casal que havia adotado a adolescente europeia refugiada estava pronto para a quantidade de perguntas que a jovem exigiria fazer. Dida e Didá sabiam que europeus costumam querer a tudo entender.

Exausta, suja, mas arrogante, Ivy quis saber porque fora da Europa, não havia, em nenhum lugar, botões nem teclas, bem como maçanetas ou alças. E porque todos os objetos, do menor parafuso à maior ponte, eram moles, emborrachados, algo úmidos e definitivamente mornos. Fora da Europa, nenhum objeto inventado pelo ser humano era rígido.

Em seguida, a refugiada quis saber sobre como chamar Dida e Didá, pois a adolescente inglesa refugiada cristã não havia conseguido identificar qual das duas era o homem e a mulher; pois havia traços masculinos e femininos nas duas, mas que ao mesmo tempo não lhe pareciam ser traços masculinos, nem traços femininos. Pareciam ser uma outra coisa que ela, Ivy, tentava entender. Depois, quis saber como saber como se comportar em um mundo sem uma lei que diga o que é certo e errado. Enfim, como se comportar em um mundo que não separa tudo em apenas dois aspectos. Em um mundo não binário. Um mundo que celebra a transformação incessante que é. Como viver nesse transmundo.

A refugiada europeia também quis saber porque fora da Europa a cor dos corpos das pessoas não era branca. E era tanta coisa que queria saber em não demorou para ter uma crise de uma das muitas moléstias exclusivas da pobre Europa. Pânico. Ansiedade. Mãos frias, suadas, coração disparado, sensação de morte. Todos os hospitais fora da Europa estavam, há décadas, preparados para tratar desta doença vinda do velho continente. Sem surpresa, e com pena, Dida e Didá levaar Ivy ao centro médico mais próximo.

Ivy havia estudado apenas em universidades europeias. Por isso, era pouco erudita. Toda ciência europeia faz descobertas que civilizações anteriores já haviam feito há milênios. Ivy sabia tudo sobre causalidade na física de Bohn, sobre como a invenção da imprensa cravou os instrumentos pensados por Vitrúvio e que reforçaram modelos fixos como os desenhados por Piero Della Francesca, mas nada sabia sobre as ciências que não glorificam nomes de homens. Ela não conhecia a matemática iorubá, ou as preocupações ambientais dos povos mesoamericanos, ou as artes cênicas dos Zhou. Ivy sequer saberia descrever satisfatoriamente tudo o que quer dizer a palavra Exú. Por isso, estava ali, naquele estado. Ataque de ansiedade, pânico pré depressão.

Os europeus chamavam de terreiro o modelo de hospital que havia prevalecido fora de seu continente. Usando de tecnologia milenar, refutada e proibida na pobre Europa, os terreiros eram… terreiros mesmo. Lugares que atendiam todas as pessoas, entendendo-as todas como um arquivo que cada uma é, e do grande arquivo coletivo que todos somos. Tambores, iaôs, irmãs, mães e pais de santo compunham o corpo de terapeutas.

Tocava-se o tambor e começava-se a cura.

A primeira entidade que baixou no corpo de Ivy a fez comportar-se como um guerreiro másculo e bravo e severo. Por uma hora, Ivy pôde, finalmente, ser isso: o que nem sabia que queria ser. O mesmo aconteceu quando baixou uma entidade com todos os traços do que na Europa chama-se de feminino, com base na ideia europeia de gênero, que tentou impor ao mundo, a partir dela, construções de classe e raça, para que tudo isso sustentasse o sistema econômico que o velho continente adotara. Uma hora depois, Ivy pôde ser um erê, uma criança de três anos. Ela pôde sentar, chorar, pedir colo e uma chupeta na boca. E uma hora depois, baixou-lhe um preto velho que a fez ter o prazer de ser a senhora curvada e de humores cansados da vida que sempre foi. Ivy pôde ser tudo o que era, e essa foi apenas a primeira de meses de sessões no terreiro, que era frequentado por pessoas saudáveis, porque saúde, fora da Europa, era não esperar o corpo ou a mente adoecerem. A informação é a raíz da compreensão, e a compaixão é sua flor, concluiria anos depois.

A tecnologia milenar que as clínicas terreiros usavam para curar refugiados europeus chamava-se, desde sempre, candomblé.

Trinta anos se passaram. Embora no mundo não colonizado por europeus, o tempo não fosse um marcador tirano, destes que nos cobram. Cronos havia se tornado um marcador parceiro.

Três décadas após ter chegado ao Brasil como refugiada, Ivy era uma mulher madura e famosa cientista Brasileira. Trabalhava como arquivista. Fora da Europa, pessoas, cada uma delas, era considerada um arquivo inestimável. Então, por todo mundo, menos na Europa, todas as cidades possuiam arquivos, que eram lugares onde pessoas entravam e contavam sua história de vida para uma câmera e um microfone e a gravação era arquivada para ficar a disposição de outros cidadãos, que procuravam por depoimentos de pessoas como quem, na Europa, procura uma garrafa de vinho para passar bem a noite.

Organização não é o contrário de desorganização. Embora não houvesse regras, era exemplarmente organizado o acervo da agora senhora Ivy, que constituía de testemunhos audio-visuais. Ivy passava noites deliciando-se com imagens que havia colhido nestes anos de Brasil, cuja capital, por razões óbvias, ficava no centro da floresta amazônica. Lá também era onde havia a maior densidade demográfica. Cidades menores, litorâneas, como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Salvador, eram o paraíso de africanos e indígenas prósperos. Os filmes de Ivy mostravam, por exemplo, o calçadão de Ipanema onde só se viam famílias negras passeando sob a lua e a brisa que vem do mar.

Neste planeta alternativo, gente branca era coisa difícil de ver em países prósperos. Quem prosperou foi quem nasceu sobre terras onde abundam riquezas naturais.

Para tentar ajudar o povo branco, os povos que prosperaram começaram a tentar promover em todos os setores da sociedade, incluindo o mercado de trabalho, a ideia de inclusão.

Incluir gente branca nos ambientes, entender sua visão de mundo.

Jornais, por exemplo, começaram a contratar jornalistas brancos. E até um blog dedicado apenas a brancos escreverem foi criado. O mais famoso deles chamava-se ´Quadro-branco’.

Um dia, no ´Quadro-branco’, o editor do blog resolveu escrever um texto imaginando um planeta alternativo, que tivesse sim sido invadido, saqueado e violentado por seus conterrâneos europeus no século 16. Ele imaginou um mundo com noções calcificadas de certo e errado, de beleza e feiúra.As ruas da cidade cheias farmácias, lojas de armas, gente com privilégios convivendo com mendigos cracudos nas ruas, Imaginou todas riquezas do mundo saqueadas e expostas nos museus de Londres e Paris. Imaginou a escravidão e o extrerminio de milhões de indígenas sul, norte americanos e de gente preta vinda da áfrica.

Pelo menos, pensou, neste mundo onde o negro sequestrado foi obrigado a desembarcar como escravizado em países como Brasil e Estados Unidos, existiria o jazz, o blues, o samba e rock and roll. Algo que não existiria em um mundo violentado por europeus - pensou ele, esquecendo dos navegadores bantos que chegaram ao continente sul-americano no ano 2.600 antes de Cristo, felizes e dispostos a estabelecer relacionamento com as comunidades indígenas daqui - algo que seria apagado por livros de história produzidos por iluministas.

O jornalista branco se recostou na cadeira.

Quem sabe, em algum lugar, exista um mundo assim, pensou.

Um mundo onde fluxos são controláveis.

Onde Planeta é só um planeta, pele é só uma pele, prata é só prata, mel só é mel, clavícula é apenas um osso, aorta apenas uma veia,, alecrim um tempero, amor um sentimento, luto algo que vem e vai, círculo uma forma, fezes o dispensável, chuva água que cai, inveja coisa apenas ruim, música apenas o que obedece as regras da afinação, movimento só o que aparenta, voz apenas a que se ouve.

Um planeta tão simplificado e controlado que qualquer movimento de independência mereça, na concepção de colonizados e colonizadores, uma data comemorativa.

Um mundo assim, binário.

Independência ou morte.

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