Que imposto é esse

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Que imposto é esse - Eduardo Cucolo
Eduardo Cucolo

Debate em audiência pública mostra incômodo com garantia sobre crédito de novo imposto

Especialista diz que propostas deixam essa e outras questões dependentes de lei complementar

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São Paulo

O objetivo da audiência pública realizada nesta terça (14) pelo grupo de trabalho da reforma tributária era obter um "diagnóstico do sistema tributário atual", mas o debate também serviu para apontar alguns pontos de resistência às duas propostas que tramitam no Congresso.

Mary Elbe Queiroz, pós-doutora em Direito Tributário pela Universidade de Lisboa, por exemplo, disse aos parlamentares que as duas propostas em discussão são grandes cartas de intenção, que deixam muitos pontos relevantes para definição por meio de lei complementar.

Ela questionou diversas vezes a afirmação de que a reforma prevê crédito amplo para evitar a cumulatividade dos novos tributos. Segundo Queiroz, as PECs 45 e 110 em nada alteram o texto constitucional em relação à questão da não cumulatividade.

Mesa com parlamentares e participantes do debate
Audiência pública sobre o diagnóstico do sistema tributário nacional - Vinicius Loures/Câmara dos Deputados

A tributarista também questionou a necessidade de o contribuinte fiscalizar o fornecedor para garantir o crédito e o prazo de 60 dias para a restituição. Ou seja, vender o produto sem saber qual a carga tributária do produto.

"Qual o preço que eu vou vender? Comprei hoje e vou vender daqui cinco dias. Vou embutir um crédito a compensar? Como, se eu não sei se será compensado ou não?", questionou. "Isso precisa ser corrigido."

A questão despertou o interesse dos parlamentares do grupo de trabalho, que pediram mais esclarecimentos sobre o tema.

"Para não ter cumulatividade, vamos dizer que eu comprei daquela empresa e que ela não pagou o tributo ainda. Como é que eu vou fazer a cobrança no meu preço? Isso não está na reforma. É preciso clarear. É um ponto fundamental para destrincharmos toda essa questão do IVA. Preocupa-me bastante a sistematização de como é que isso vai acontecer no dia a dia", disse o deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE).

A mudança nesse ponto do texto constitucional também foi defendida por André Mendes Moreira, livre-docente da Universidade de São Paulo e professor da Universidade Federal de Minas Gerais.

Para ele, as PECs devem definir que o IBS só é exigível após dedução do imposto sobre todas as aquisições que impactam o preço do bem ou serviço, estejam eles direta ou indiretamente relacionados com a atividade empresarial.

"Aqui é o coração do imposto. Não adianta sustentar que a lei complementar resolverá, porque hoje ela poderia resolver no ICMS, IPI, Cofins e não resolve", afirmou Mendes, que participou de audiência do grupo de trabalho realizada nesta quarta (15).

'Visão incompleta' de alguns setores

Em sua maioria, os debatedores defenderam as propostas em discussão. Entre eles, Vanessa Canado, Luiz Carlos Hauly e o ex-ministro Maílson da Nóbrega.

Canado afirmou que muitos países adotam alíquotas diferenciadas para produtos, mas que não existe em nenhum lugar do mundo incentivo setorial. "Tem IVA menor para saúde e alimentos, mas não para a empresa. Eles olham para o bem e serviço que vai ser consumido. O impacto do IVA no final é no preço e não na margem dos produtores e vendedores."

Ela rebateu as propostas alternativas que sugerem a implementação de um "sale tax" semelhante ao americano, ao afirmar que esse é um tributo altamente sonegável. Daí a opção da maioria dos países da União Europeia e da América Latina pelo modelo IVA, chamado de IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) nas duas PECs.

Maílson afirmou que a base de arrecadação do ICMS está minguando, o que deveria servir de alerta para os governadores. E que o ISS (imposto municipal sobre serviços) é "o pior tributo do Brasil", com incidência em cascata, funcionando como uma espécie de CPMF para o setor de serviços.

Disse também que as entidades de serviços e a agropecuária estão com visões incompletas sobre a reforma e que atender a todas as demandas setoriais vai piorar a qualidade da reforma.

"Alguém calculou que a tributação da agricultura vai aumentar 300%. Impossível. As pessoas não estão considerando os benefícios da reforma para a agricultura, inclusive o aproveitamento do crédito, que praticamente não existe hoje, e a desoneração das exportações", afirmou.

O advogado Eduardo Fleury apresentou um trabalho que ele realizou em conjunto com o Banco Mundial sobre a carga tributária de alguns bens e serviços, no qual mostra como a cumulatividade cria o que ele classifica como "iceberg tributário", a parte da carga composta por "impostos invisíveis".

Na construção, a carga visível de 5,99% esconderia uma tributação de 16%. O café, mesmo com tributação zero no varejo, carrega uma tributação de 10,6%.

IVA na Europa

Nesta quarta (15), o debate é sobre "Melhores Práticas Internacionais de Tributação sobre o Consumo".

Na abertura, a professora Rita De La Feria, da Universidade de Leeds (Inglaterra), listou cinco mitos sobre o modelo IVA: que é um imposto velho, desatualizado, fraudulento, não compatível com sistema federativo e que os melhores IVAs têm regimes diferenciados.

Ela afirmou que mais de 170 países adotam o sistema e que o IVA é o imposto que melhor tem lidado com desafios como a tributação da economia digital. "A Comissão Europeia tem ficado surpresa com o nível de receita que tem sido possível obter da economia digital através das reformas do IVA."

Sobre os sistemas diferenciados na União Europeia, que geral cerca de 75 alíquotas, disse que essa é uma característica dos IVAs implantados nos anos 50 e 60 e que politicamente se tornou difícil mudar o sistema. "Não sabíamos os grandes problemas que os regimes diferenciados criam, mas agora é tarde. Os IVAs a partir dos anos 80 e 90 têm alíquotas únicas, mínimo de isenção e sem regimes setoriais, então que se faça o melhor possível nessa fase [no Brasil]."

Melina Rocha, da Universidade de York (Canadá), afirmou que alíquotas diferenciadas por setores é algo que não existe nem na União Europeia, onde há benefício para alguns produtos. "Na União Europeia, o setor de serviços como um todo não tem alíquota menor, tem para alguns serviços."

Ela disse que o IVA europeu, em termos de legislação, é um sistema antigo que sofreu muitos remendos e que o Brasil pode seguir modelos mais modernos, como aqueles da Nova Zelândia, Canadá, África do Sul e Índia. "Já que vai criar um tributo novo que seja com base em legislação mais nova, não o IVA europeu, que é antigo, remendado e com problemas de alíquota diferenciadas.

Melina também defendeu a criação de uma entidade de gestão compartilhada para gerir o novo tributo e afirmou que as soluções encontradas por Índia, Canadá e União Europeia não preservam a autonomia de estados e municípios.

Na UE, o princípio do destino nunca foi implementado de forma integral. No Canadá, o governo federal faz toda a administração e regulação. A Índia adotou o sistema conhecido como "modelo do barquinho", com IVA dos estados em operações internas e arrecadação federal nas interestaduais.

Para ela, a proposta feita pelos governadores em 2019 e que foi incorporada à PEC 110 é o melhor modelo para garantir autonomia de estados e municípios e a efetiva devolução de créditos acumulados ao contribuinte.

Ao fazer um balanço desses debates, o relator do grupo de trabalho, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), disse que já passou da fase de afirmar que é preciso tratar primeiro da reforma tributária da renda ou da reforma administrativa, questões levantadas por alguns palestrantes nesta semana, antes de mexer no sistema tributário do consumo.

"Não vamos mais entrar em questões que já não estão mais em discussão. A despeito de todo esse ‘mas, mas, mas’, que não é hora de fazer", afirmou. "Estamos com uma missão e vamos cumprir nossa missão. Não vi ninguém defender aqui o sistema tributário atual."

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