Saúde em Público

Políticas de saúde no Brasil em debate

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A saúde mental do país às escuras

Área vive um apagão de dados há mais de sete anos no Brasil

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Dayana Rosa Luciana Barrancos Maria Fernanda Resende Quartiero Rebeca Freitas

Imagine cozinhar um prato pela primeira vez, mas não saber quais ingredientes usar ou o modo de fazer. Imaginou? Com exceção dos talentosos por natureza, seria difícil ficar bom. É assim que a maioria das políticas públicas de saúde mental tem sido conduzidas no Brasil: às escuras.

Desde a última edição do "Saúde Mental em Dados", já se passaram mais de 7 anos da publicação oficial de informações transparentes e qualificadas sobre as políticas e programas de saúde mental do Poder Executivo.

Não só os governantes, mas também gestores e pesquisadores são obrigados a recorrer a outras formas de informação na tentativa de implementar políticas públicas baseadas em evidências. Uma das consequências desse apagão é o desinvestimento na Política de Saúde Mental, conforme aprovada e concretizada na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do SUS.

Para cobrir parte dessa lacuna, o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e o Instituto Cactus somaram esforços para levantar informações relevantes e mapear o que o Poder Executivo tem a oferecer na área de Saúde Mental, em todos os níveis de Atenção e também nas estratégias de reinserção social - um dos principais objetivos da Reforma Psiquiátrica.

A imagem colorida mostra uma vela acesa no escuro
A área de saúde mental vive um apagão de dados há mais de 7 anos no Brasil - Andres Uran/Unsplash

Os serviços de Saúde Mental poderiam estar mais perto de quem precisa

A Atenção Primária à Saúde (APS) é a principal porta de entrada do SUS, ou seja, onde a prevenção tem mais espaço para acontecer. Nela, existem os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) e os Consultórios de Rua. Os NASF, um dos tipos de serviços mais acessível às pessoas em seus bairros, contam com equipes de formação de diversas áreas de conhecimento, garantindo um atendimento mais amplo e, ao mesmo tempo, resolutivo.

Contudo, em 2017, a revisão da Política Nacional de Atenção Básica acabou com o financiamento federal dos NASF e, por consequência, o mesmo aconteceu com os Consultórios na Rua, responsáveis por ampliar o acesso e desenvolver ações para a população em situação de rua - notadamente um segmento da população que não para de crescer.

A falta de informação fecha serviços e diminui o acesso à saúde

Na Atenção Psicossocial Estratégica, ou seja, aqueles serviços que gerenciam a demanda e a oferta, temos como principais equipamentos, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e as Equipes Multiprofissionais de Atenção Especializada. Estas são compostas por médicos psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, enfermeiros e outros profissionais que atuam no tratamento de pessoas com transtorno mental em ambulatórios.

Já os CAPS, que podem ser voltados para o público infanto-juvenil, adulto ou usuários de álcool e outras drogas, se propõem substitutivos ao modelo da internação, ou seja, incorporando o cuidado na comunidade e estimulando a integração com suas famílias e a sociedade. Mas, em 2018, o Ministério da Saúde desabilitou 72 unidades de CAPS, alegando ausência de registros de procedimentos nos sistemas de informação do SUS nestes serviços específicos.

Aumentam as chances de tomar decisões equivocadas

Na Atenção Residencial de Caráter Transitório temos as Unidades de Acolhimento (UA) e as Comunidades Terapêuticas (CT). As UA, que contam com um CAPS de referência, podem atender os públicos adulto ou infanto-juvenil, tendo como objetivo oferecer acolhimento voluntário e cuidados contínuos para pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, em situação de vulnerabilidade social e familiar e que demandem acompanhamento terapêutico e protetivo.

As CT, por sua vez, são entidades da sociedade civil que não estão, necessariamente, cadastradas como serviço de saúde, que não contam com internações sempre voluntárias, e que já foram alvo de diversas denúncias de violação de direitos humanos - conforme divulgou o Relatório Nacional de Inspeção em Comunidades Terapêuticas. Entretanto, ao passo que as UA receberam, em 2021, pouco mais de R$ 20 milhões de repasse do Governo Federal, as CTs receberam, ao que se sabe, seis vezes mais que esse valor, e recentemente passaram a contar com imunidade tributária de contribuições à seguridade social.

Sem avaliação, sem melhoria

Sobre a Atenção Hospitalar, tanto as Enfermarias Especializadas em Hospital Geral, quanto os Hospitais Psiquiátricos Especializados e os Hospitais-Dia não recebem inspeção do Poder Executivo há 8 anos. O último Programa Nacional de Avaliação de Serviços Hospitalares (PNASH)/Psiquiatria foi realizado no biênio 2012/2014.

O PNASH é uma pesquisa de satisfação dos usuários nas unidades de Pronto Socorro, Ambulatório e Internação, que envolve, além da aplicação de roteiro técnico realizada pelos gestores estaduais e municipais em hospitais públicos e privados vinculados ao SUS, a análise da estrutura existente e dos processos prioritários.

Os principais objetivos deixam de ser prioridade

Dentre as estratégias de reinserção social, que é um dos principais objetivos da Reforma Psiquiátrica, estão os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), o Programa de Volta para Casa e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Os SRTs são alternativas de moradia para um grande contingente de pessoas que estão internadas há muitos anos em hospitais psiquiátricos por não contarem com suporte adequado na comunidade.

O Programa de Volta para Casa garante um auxílio-reabilitação psicossocial para o acompanhamento das pessoas nessas condições. E o BPC, por sua vez, destina-se às pessoas que tenham uma renda inferior a um quarto do salário mínimo e mais de 65 anos (ou deficiência em qualquer idade). Assim como os CAPS, em 2018 foram desabilitadas 194 SRT, e o Governo Federal acabou de revogar, em março de 2022, o Incentivo Financeiro de Custeio Mensal para o Programa de Desinstitucionalização da RAPS e transferiu para o Ministério da Cidadania mais uma ampliação de investimentos em hospitais psiquiátricos, através de um edital para Organizações da Sociedade Civil (OSCs) - incluindo organizações religiosas.

A história recente das políticas de saúde mental no Poder Executivo se confunde com uma histórica falta de informações que, por sua vez, impacta todas as fases das políticas públicas - desde sua formulação até a avaliação e aprimoramento.

Hoje, gestores, pesquisadores e organizações da sociedade civil não têm acesso a dados como a quantidade de pessoas que estão internadas em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, quantas são as CT que recebem financiamento público ou quantas pessoas foram atendidas na RAPS e qual o desfecho dos casos clínicos.

Organizações da sociedade civil, com o apoio de Secretarias Municipais de Saúde, se mobilizaram para suprir alguns dos dados faltantes e avançar neste debate, mas é necessária uma priorização estratégica em todas as esferas no sentido da mensuração e avaliação da qualidade dos serviços, para que tenhamos o aprimoramento contínuo na prestação do cuidado e no uso de recursos públicos.

Os serviços oferecidos pelo SUS para pessoas com transtorno mental, quando recebem investimento para ter a RAPS como orientadora do cuidado e estão comprometidos com a proteção de direitos de usuários e famílias, são um bom começo para fazer políticas públicas de saúde mental eficientes.

Contudo, quando as tomadas de decisão não são baseadas em evidências, ou as evidências pouco são produzidas e divulgadas com transparência, a descaracterização de políticas é inevitável e suas consequências são reais no cotidiano de quem sofre. Produzir dados e gerar informações é começo e fim para esse impasse: pressuposto básico para garantir o cuidado e uma luz no fim do túnel para as políticas de saúde mental.​

Para sugestões de pauta, parcerias e comentários, entre em contato através dos e-mails contato@ieps.org.br e contato@institutocactus.org. Até o próximo Saúde Mental em Pauta!

Dayana Rosa é pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), administradora pública, mestre e doutora em Saúde Coletiva (IMS/UERJ). Luciana Barrancos é gerente executiva do Instituto Cactus, graduada em Direito e Administração de Empresas pela FGV e com MBA por Stanford. Maria Fernanda Resende Quartiero é comunicadora, investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização sem fins lucrativos que atua para ampliar e qualificar o debate com os cuidados em prevenção de doenças e promoção de saúde mental. Rebeca Freitas é Coordenadora de Advocacy e Relações Governamentais no Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), graduada em Direito pela UFRJ e em Ciências Sociais pela FGV-RJ e mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio.

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