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Saúde Mental - Sílvia Haidar
Sílvia Haidar

Burnout: José Fernandes Vilas explica a síndrome e a mudança na OMS

Psiquiatra e neurocientista conta como o esgotamento profissional afeta a vida do trabalhador

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No filme em preto e branco, e personagem de Charlie Chaplin aparece sentado na engrenagem da máquina de uma fábrica
Charlie Chaplin em cena do filme 'Tempos Modernos', de 1936 - Reprodução
São Paulo

De tanto apertar parafusos em uma fábrica, ser cobrado por produtividade sem tempo para descansar, e até testar uma máquina para se alimentar enquanto trabalha, o personagem de Charlie Chaplin, em "Tempos Modernos", sofre uma crise nervosa.

Para o psiquiatra e neurocientista José Fernandes Vilas, autor do livro "Quando o Sucesso Vira Burnout", o filme de 1936, além de mostrar o modo de produção industrial e o período após a crise de 1929, retrata também um clássico caso de burnout.

O esgotamento profissional que acomete os trabalhadores há séculos, segundo Vilas, ganhou destaque com a pandemia da Covid-19, quando as pessoas tiveram que conciliar as obrigações profissionais com as tarefas de casa, tudo isso no mesmo lugar, o home office.

A síndrome é caracterizada por exaustão emocional, despersonalização —quando o indivíduo começa a agir com frieza no ambiente profissional— e baixa realização no trabalho.

"É nessa terceira etapa do burnout, a baixa realização no trabalho, que os pacientes costumam chegar ao consultório médico procurando ajuda. Nessa fase não há vontade de retornar à função, e sim mudar de profissão", escreve o psiquiatra em seu livro.

Em 1º de janeiro deste ano, o burnout ganhou uma descrição mais detalhada na CID-11 (Classificação Internacional de Doenças) pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Com a mudança, a síndrome passa a ser estabelecida como um fenômeno ocupacional.

Na entrevista a seguir, o médico explica a mudança e os problemas que o burnout podem causar na vida vida de um profissional.

Desde 1º de janeiro deste ano, o burnout passou a ser classificado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como uma doença ocupacional. Na prática, o que isso muda para as empresas e para o trabalhador? Primeiramente, precisamos esclarecer que burnout não é considerado doença, é uma síndrome. Para a medicina, doença e síndrome são coisas diferentes. Resumidamente, as doenças têm requisitos básicos exigidos para serem consideradas doenças pela OMS. Já as síndromes são quadros que possuem uma fenomenologia clínica importante dentro das suas particularidades, porém falta um arcabouço estrutural dentro das exigências da OMS para serem consideradas doença.

Quanto à mudança na OMS, o que ocorreu foi um reajuste. O burnout existia na CID 10 e foi realocado na CID 11 dentro do que diz respeito aos fenômenos ocupacionais. O burnout continuou sendo uma síndrome, porém reconhecidamente incapacitante, inclusive podendo determinar afastamento do trabalho ou até invalidez.

Sobre a importância dessa mudança, podemos eleger 1º de janeiro como o marco da saúde mental nas empresas. Definitivamente, o burnout passa a existir como síndrome, dentro e fora da empresa, porque até então era algo muito genérico, podendo ser usado para qualquer tipo de esgotamento, mas agora é exclusivo do trabalho. O burnout, hoje, é considerado como se fosse um acidente de trabalho.

A OMS colocou o burnout num patamar de destaque. O que havia antes da troca de CID era que o único responsável pelo adoecimento era o paciente, agora sabemos que foi dentro do contexto do trabalho que o processo de adoecimento ocorreu. Ou seja, a empresa foi envolvida nesse processo.

Abre-se aqui uma porta de diálogo para que a empresa possa humanizar a abordagem ao seu funcionário e para que o trabalhador possa entender melhor todo seu adoecimento. Aquilo que poderia ser motivo de demissão, hoje é motivo para a empresa reconhecer o que aconteceu de errado.

Se foi a empresa que adoeceu o funcionário, o que ela pode fazer para mudar? Se o funcionário foi permissivo, o que pode ser feito na gestão para ajudá-lo? Sabe o conceito de insalubridade? Nele se encaixa o burnout. Quanto mais insalubre for a empresa, maior o risco para o profissional que ali trabalha desenvolver a síndrome de burnout.

Antes de 1º de janeiro, o burnout ainda era tratado com descaso pelas empresas ou até mesmo como chacota por médicos nas perícias do INSS, que colocavam o trabalhador adoecido como se não quisesse trabalhar.

O médico José Fernandes Vilas é uma homem branco, usa barba e cabelos castanhos, veste um jaleco branco, uma camisa branca e uma gravata azul escuro
O médico e neurocientista José Fernandes Vilas, especialista em burnout - Agência Kaya

No seu livro, 'Quando o Sucesso Vira Burnout', você explica as três fases do burnout: exaustão emocional, despersonalização e baixa realização no trabalho. Você também diz que geralmente é nessa última etapa, na baixa realização, que as pessoas costumam aparecer no consultório. Por que as pessoas demoram tanto assim para pedir ajuda? O indivíduo que adoece por burnout não é aquele funcionário mediano ou improdutivo, é o número um da empresa. É o funcionário do mês. Ele sempre está entre os melhores. Ele não chegou ali por acaso.

Existe uma escada em que a pessoa sobe degrau por degrau para chegar onde está. Quando começa a apresentar os sintomas de burnout, como defesa própria, ela meio que desvaloriza a sua dor para não ser perceptível pelos colegas e gestores, para que não seja visto como o fraco ou o doente da empresa. Esse profissional fica com receio de ser jogado para escanteio ou ser exposto.

O burnout mexe com o sonho do profissional. Aquele cara que um dia entrou na faculdade sonhando com o lugar que ele está neste exato momento ou num lugar que seja considerado o caminho para o seu alvo. Ele não vai abrir mão facilmente.

Por isso esse indivíduo chega ao consultório destruído. O interessante é que muitos quando chegam à consulta, a primeira coisa que falam é que não podem pegar atestado e que só precisam de um remedinho para dormir e se concentrar. Isso acontece todos os dias. Uma vez tive que ligar para a escola de uma professora e explicar a situação, pois ela entrou em pânico dentro do consultório quando eu disse que ela deveria ficar afastada do trabalho por 30 dias.

Quais são os sinais que a pessoa pode perceber para buscar ajuda antes que a situação fique tão grave? Quando o burnout está na fase inicial, a pessoa começa a apresentar dificuldade para iniciar o sono ou mantê-lo, acorda várias vezes durante a noite. Nesses momentos, muitas vezes o pensamento recorrente é o trabalho.

Ela pode apresentar ganho ou perda de peso, alterações de humor, irritabilidade, nervosismo, angústia, rispidez no trato, a pessoa também pode começar a ficar "reclamona".

Com o passar do tempo e com a intensificação da doença, pode haver dificuldade de memória, quando a pessoa começa a perder coisas.

Também há dificuldade de foco, quando costuma acontecer procrastinação, o profissional começa a deixar as tarefas para a última hora, acontece de perder prazos, o que não ocorria enquanto estava bem de saúde mental.

A pessoa também pode começar a apresentar dificuldade de comunicação entre os colegas de setor, evitando happy hours ou encontros em que pode estar alguém da empresa.

Num quadro mais intenso, o paciente pode ficar tão ansioso e exaurido que começa a ter queda de cabelo, aftas, dores de cabeça diárias, dores musculares, alteração do hábito intestinal —como diarreia ou constipação intestinal—, aumento da frequência cardíaca, dando uma sensação de palpitação. Em mulheres, pode haver alteração do fluxo menstrual.

Também em estágios mais avançados, o trabalhador começa a se questionar, como se não fosse capaz de exercer sua profissão. Já presenciei casos de pessoas que trocaram de profissão sem saber que o que as afligiam era a síndrome do esgotamento profissional.

Como costuma ser o tratamento de burnout? O tratamento é feito com um profissional de saúde mental, médico psiquiatra, sempre associando a um psicólogo, principalmente um que possua a especialidade, como psicologia organizacional com abordagem em terapia cognitiva-comportamental, para que faça o controle e manejo do estresse.

Nas capitais do Brasil e nos grandes centros, achar esses profissionais de certa forma é fácil, porém no interior há uma dificuldade potencial para encontrar psiquiatras e psicólogos organizacionais. Por isso, muita vezes o paciente inicia o tratamento com um neurologista ou um médico da saúde da família que entende de saúde mental e de prescrições de medicações controladas. Outro problema angustiante é a ausência de psicólogos especializados em psicologia organizacional.

A partir do momento que o paciente está sob o cuidado desses profissionais —médico e psicólogo—, é aconselhado o manejo do autocuidado, que é orientar o paciente para que faça atividade física regularmente, alimentação saudável, meditação, higiene do sono e prescrição verde.

A higiene do sono é uma tentativa de melhorar a qualidade do sono. É sabido que um ambiente mais escuro, aconchegante, calmo e silencioso, sem exposição a telas de celular por causa da luminosidade e excesso de informações, é o primeiro passo para melhorias significativas da qualidade do sono. Tudo isso ajuda o nosso corpo a produzir o hormônio do sono, a melatonina. Há também a contraindicação do fumo e de beber café e refrigerantes à noite, pois servem como estimulantes do cérebro. Sem essas adaptações, fica inviável ter uma boa noite de sono.

Já a prescrição verde é um tipo de abordagem em que o médico incentiva o paciente a estar em contato com a natureza. Há estudos que demonstram que a partir de 120 minutos de exposição à natureza por semana há probabilidade significativamente maior de apresentar boa saúde mental e maior bem-estar psicológico, principalmente em relação às pessoas que nao têm nenhum contato com a natureza. A pessoa não precisa estar num sítio ou frente a uma cachoeira para ter contato a natureza, um pequeno jardim em casa, onde a pessoa passa um tempo cuidando de plantas, já é considerado efetivo. Em grandes cidades, jardins de sacada de prédio são muito bem-vindos.

O paciente precisa sempre ser afastado do trabalho? Ou é possível continuar trabalhando durante o tratamento?
Quando os pacientes estão em fases iniciais, em que os sintomas não impossibilitam sua produtividade, a prescrição ou não de medicação, o acompanhamento com um psicólogo e as terapias de autocuidado podem funcionar bem, sem a necessidade de afastamento do trabalho.

No caso de pacientes com maior sintomatologia, quando o trabalho já virou um lugar de extremo sofrimento, o afastamento é necessário. O atestado vai depender de caso a caso, geralmente o médico e o psicólogo se unem para designarem o tempo de afastamento, visto que a medicação é o ponto inicial, mas o trabalho diário de conscientização do autocuidado é feito entre psicólogo e paciente.

Há casos raros de pacientes que jamais retornam para suas funções. Isso acontece quando o trabalho e o seu contexto já não existem mais na consciência do profissional, como se fosse um casamento.

​​De acordo com a sua prática clínica, você acha que as pessoas ainda têm medo de apresentar ao chefe um atestado psiquiátrico, de burnout ou de outro transtorno? Por que existe esse estigma no ambiente de trabalho?
Sim, os pacientes psiquiátricos em geral possuem um bloqueio. Isso ocorre por causa desse conceito de sociedade em que o indivíduo deve se encaixar dentro dos padrões da "normalidade". Apesar deste estigma estar sendo quebrado a cada dia, principalmente desde a desinstitucionalização dos pacientes psiquiátricos a partir do anos 1990, existe uma necessidade urgente da quebra de paradigmas atualmente. As pessoas deixam de procurar ajuda, de tomar medicação, e de se cuidar, pois há um medo intrínseco de não se sentir mais pertencente ao grupo social.

Há diversos fatores que podem levar o paciente a ter medo de apresentar ao chefe um atestado psiquiátrico, independentemente do transtorno. É uma situação delicada em que o paciente tem receio de ser excluído da categoria de pessoa normal dentro e fora da empresa. Principalmente por causa de falácias preconcebidas de que o paciente psiquiátrico ou portador de um transtorno mental não é normal.

Muitas pessoas relatam ter medo da mudança de comportamento das outras pessoas no convívio social após o diagnóstico, ou seja, após receberem a marca de ser "doente mental". Muitos pacientes relatam que tomar remédio para doença mental é estar fora do padrão de normalidade, fazendo com que a pessoa seja rotulada como diferente das demais. Alguns pacientes relatam que a partir do diagnóstico de um transtorno mental é como se a pessoa fosse incapaz de saber o que é melhor para si, ou seja, incapaz de reger a sua própria vida.

No caso do burnout, a meu ver é mais grave pois toca no sonho de vida daquele profissional. O medo de ser demitido, de não ser promovido, de ser estigmatizado, e com isso jamais conseguir chegar no lugar dos sonhos. No burnout, a pessoa adoece pois não conseguiu administrar as pressões do sonho da vida dela. É como assinar uma declaração de incompetência.

Uma situação que tem nos dado certo alivio é ver pessoas famosas falarem abertamente sobre suas doenças e sobre autocuidado. Como médico da Federação de Ginástica do Estado do Rio de Janeiro, vejo que de um ano para cá, desde que a Simone Biles falou que interrompeu a competição nos Jogos Olímpicos para cuidar da saúde mental, muitos outros atletas de alto rendimento têm falado sobre suas dores. Isso ajuda profundamente na mudança da sociedade, pois as pessoas se permitem. A partir do momento que seu ídolo se expõe, é como se ficasse tangível o adoecimento para pessoas comuns. Na neurociência chamamos isso de reação do neurônios espelhos, em que a pessoa olha, se identifica, e refaz o ato. No caso da saúde mental, é como se a pessoa tivesse um aval para expor suas dores, sem preconceito, como seu ídolo.

No seu livro, você explica que as pessoas, devido ao cansaço mental, acabam cometendo mais erros no trabalho, atrasando prazos, faltando por outras doenças que podem surgir com o burnout, como enxaquecas. Ter um diagnóstico de burnout pode ajudar o trabalhador a se proteger de uma demissão injusta?
Ter o diagnóstico é a única maneira de protegê-lo. As complicações oriundas do burnout são as mais variadas possíveis, mas dentro do contexto da empresa, isso pode ser usado contra ele. Por exemplo, uma atendente de telemarketing que entra em burnout começa a ter muitos episódios de dor de cabeça intensa, aí ela começa a se automedicar, mas chega uma hora que ela vai ter que procurar ajuda. Enquanto ela não procura ajuda correta, ela vai parar semanalmente no pronto-socorro para tomar medicação para dor. Isso pode ser usado como ferramenta para demiti-la.

Outro exemplo, uma gerente de banco que entra em burnout pode começar a ficar mais irritada e sem paciência, chegando a ter infortúnios com os colegas da empresa, até o momento que num ato perde a paciência com um cliente o trata com falta de educação. Quando isso chegar até a ouvidoria do banco, pode ser a forma de demiti-la por justa causa. O burnout pode destruir carreiras.

O que pode ser feito para prevenir o burnout?
A prevenção deve ser feita por duas vias: empresa e funcionário. A empresa pode colaborar com seus funcionários contratando um psicólogo organizacional para o seu RH, para desenvolver atividades em grupo ou individuais que possam amenizar o desgaste do dia a dia.

Esse profissional do RH pode ser utilizado para reconhecer na empresa atitudes organizacionais adoecedoras. Outra alternativa que pode ser utilizada por empresas menores que não possuem psicólogo organizacional é estimular a atividade física, promover eventos como festas de confraternização, happy hour após o expediente, almoços com a família dos funcionários. Fazer ações de endomarketing é uma iniciativa que visa melhorar os diálogos dentro da empresa como, por exemplo, premiações, bônus salarial, day off, sempre visando mostrar para o funcionário a sua importância. E quando perceber que seu profissional pode estar doente, não o demita, estimule-o a procurar ajuda, ele já foi muito produtivo para você.

Quanto ao funcionário, a prevenção do burnout começa no autocuidado, no entendimento do que é o amor próprio. Claro que não estou aqui dizendo para que você não seja produtivo na empresa, muito pelo contrário. Você tem que ser produtivo para manter seu trabalho, mas o que quero chamar a atenção é como você pode fazer isso sem arruinar a sua vida. Comece com pequenos novos hábitos e, caso for necessário, procure ajuda.

Uma coisa que você diz no livro e é muito importante é que o burnout não regride sozinho. Só tirar férias de um mês não resolve? Por quê?
Quando a pessoa está bem, sem burnout, tirar um mês de férias é um direito adquirido. Ela vai para as férias curtir e comemorar tudo de bom que aconteceu na sua vida profissional naquele ano. Agora, quando a pessoa está doente, sem condições de retornar ao trabalho, quando sua produtividade está completamente limitada, tirar férias não terá o mesmo significado. Nesses casos, o necessário pode até ser afastamento do trabalho por um tempo e, quando a pessoa estiver bem, receber suas férias como premiação do ano de dedicação à empresa. Tirar férias doente é desvalorizar todo ano de trabalho.

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