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PEC 206: um duro golpe na juventude

Mensalidade nas universidades públicas afetará jovens de classes populares

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São Paulo
Ilustração mostrando 4 mulheres negras.
Edson Ikê/SoU_Ciência

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 206/2019, de autoria do deputado federal General Peternelli (União/SP), visa alterar dois artigos da Constituição Federal com o objetivo de viabilizar a cobrança de mensalidades nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). Uma proposta requentada, que já circula há tempos no país, de inspiração norte-americana e de parte das universidades europeias, que mesmo sendo públicas passaram a cobrar mensalidades como parte do ajuste neoliberal, desde os anos 1980 – e que resultaram em gigantesco endividamento estudantil.

Se aprovada, a PEC, que já recebeu relatório favorável do deputado federal Kim Kataguiri, do mesmo partido, deve ferir de morte o recente processo de democratização da educação superior no país.

E qual a justificativa para a tamanho retrocesso? O relator afirma - ao que tudo indica, sem profundo conhecimento sobre o assunto -, que a "maioria dos estudantes dessas universidades acaba sendo oriunda de escolas particulares e poderiam pagar a mensalidade.... e que não é correto que toda a sociedade financie o estudo de jovens de classes mais altas".

Apesar de ter como base um relatório de autoria do Banco Mundial, chamado Um Ajuste Justo, de 2017, o argumento é equivocado na medida em que faz uso de dados ultrapassados do perfil de estudantes das instituições públicas, anteriores ao estabelecimento da política de cotas e da expansão de vagas, a partir de 2005.

Para combater esse tipo de equívoco, que costuma se espalhar pelas redes sociais como um rastilho de pólvora, é fundamental recobrarmos fatos históricos e evidências empíricas. Dez anos depois de promulgada a Constituição Federal, tomou corpo na sociedade brasileira um movimento que reivindicava a adoção de cotas raciais e sociais para o ingresso nas universidades públicas, historicamente elitistas. O destaque especial ficou por conta do protagonismo do movimento negro, que logrou a adesão de várias instituições públicas na adoção de ações afirmativas ao longo dos anos 2000.

Na década seguinte, foi finalmente promulgada a Lei de Cotas para as IFES (2012), que consolidou uma mudança significativa no histórico perfil elitista da comunidade universitária, com a reserva de 50% das vagas de ingresso para estudantes que tivessem feito todo o Ensino Médio em escolas públicas, combinando a este perfil a situação de renda familiar – possuir até 1,5 salários mínimos per capita (R$ 1.818,00 nos valores de hoje) - e/ou a autodeclaração de raça e etnia.

No final de 2016, a lei passou a incluir um percentual de reserva também para pessoas com deficiência. O montante de vagas reservado é definido de acordo com a proporção da população-alvo nas unidades da federação onde as instituições estão localizadas. Com isso, as universidades públicas brasileiras têm ficado cada vez mais diversas e inclusivas.

Estudo recente do SoU_Ciência, baseado em dados do Censo da Educação Superior, comprova essa profunda mudança. Entre 2012 e 2022, com 10 anos de vigência da política de cotas, o perfil estudantil se alterou profundamente. Além disso, há evidências recentes de que filhos das elites estão migrando para universidades privadas de ponta, com altas mensalidades e portanto super seletivas, ou para cursos no exterior, de valores ainda mais elevados.

Além de penalizar jovens de classes médias e baixas que ainda estão nas Universidades Públicas, a cobrança de mensalidades deve produzir um impacto devastador, como ocorreu com o endividamento estudantil nos EUA e em outros países, como o Chile. Nos EUA, a cobrança de mensalidades foi a porta de entrada para a privatização de serviços universitários e o avanço de práticas mercantis de ensino e pesquisa. Sempre é bom ressaltar que o princípio constitucional do direito à educação é universal, no Brasil. Isso significa que a educação pública de qualidade deve estar disponível a todos indistintamente e não deve ser convertida em mercadoria.

Outro mito que precisa ser desfeito diz respeito ao suposto alto custo dos estudantes das públicas em comparação com as IES privadas ou estrangeiras. Como já mostrou o prof. Nelson Cardoso Amaral, da UFG e do SoU_Ciência, o Brasil tem um gasto por estudante na educação superior abaixo da média dos países da OCDE, apesar de não ser muito distante. Entretanto, essa comparação deve ser vista com muito cuidado, pois no orçamento das universidades federais brasileiras estão incorporados recursos de manutenção de seus hospitais e laboratórios de pesquisa, museus, orquestras, rádios, televisões, fazendas, centros de eventos, aposentados e pensionistas nas folhas de pagamento etc.

Não é possível admitir, em termos de comparação, uma conta que apenas divide o valor orçamentário pelo número de estudantes de graduação matriculados nos cursos ofertados pelas IFES – desconsiderando estudantes de especialização e pós-graduação, residentes em hospitais universitários etc.

Ao invés de ter que defender o óbvio, a gratuidade e o acesso à educação como um direito fundamental, nós deveríamos estar cobrando a responsabilidade de nossos governantes de projetar e debater a continuidade da expansão das universidades públicas, a ampliação de vagas de graduação e de pós-graduação, o aperfeiçoamento da política de cotas e a retomada dos investimentos, visto que ainda há um número enorme de candidatos sem vagas nas IES públicas, mesmo em vista da expansão das universidades privadas desde 1990.

É necessário clareza para compreender os verdadeiros desafios da educação brasileira e enfrentá-los com competência: uma alocação justa dos fundos públicos e a revogação do teto de gastos para a educação superior, assegurar o futuro dos jovens e o desenvolvimento do nosso país, com soberania e equidade. ​

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