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Civilização ou Barbárie?

Para onde vai a educação e a ciência brasileira depois deste domingo

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São Paulo
Ilustração mostra os candidatos à presidência: Luiz Inácio Lula da Silva (à esquerda) e Jair Bolsonaro (à direita). Em cada lado da imagem contém diferentes cores e imagens relacionadas a campanha política de cada um. No caso do Lula, o foco é na ciência e educação, com tubos de ensaio, fórmulas matemáticas, diagramas e gráficos positivos. No caso do Bolsonaro, são os cortes nas universidades públicas, fake news e gráficos negativos.
Daniel Bueno/SoU Ciência

Neste momento histórico em que o futuro do nosso país será decidido nas urnas no próximo domingo, traçamos neste artigo um breve balanço comparativo sobre o legado dos governos do ex-presidente Lula e do atual presidente Jair Bolsonaro nas áreas de Educação Superior (ES) e de Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI). Pelo que fizeram talvez tenhamos pistas do que poderão fazer. Uma análise comparativa dos programas de governo de ambos para ES e CTI já apresentamos no blog anteriormente.

O desenvolvimento de qualquer país, com equidade, sustentabilidade e soberania está intimamente atrelado ao investimento em Educação e Ciência. Por isso que a comparação entre as políticas realizadas nos governos dos dois candidatos é esclarecedora (e estarrecedora!) - e apresenta os nossos possíveis horizontes de futuro. Esperamos que o eleitor, atravessando a nuvem de fumaça, de mentiras e acusações que embaçam o processo eleitoral, possa olhar para o que de fato importa na decisão do voto.

A primeira comparação que propomos diz respeito à visão estratégica sobre a ES e CT&I de cada gestão, na articulação que promoveram entre o sistema de produção de conhecimento e as demandas da sociedade. Escolhas estratégicas representam não apenas decisões estruturantes das políticas públicas, mas também visão de país e de mundo que está por trás delas.

Mesmo Lula não tendo mais que o ensino fundamental, e por isso mesmo (por saber a importância da educação), investiu, expandiu e apoiou o sistema de ensino superior e pesquisa com números expressivos (que citaremos adiante). O nível de investimento não apenas permitiu recompor o sistema que estava cambaleante depois da década neoliberal nos anos 1990. Ele ampliou também o fomento à pesquisa brasileira, expandiu as universidades federais como novos campi sobretudo no interior e nas periferias metropolitanas, quase duplicando o número de vagas públicas e apoiando a expansão das vagas em instituições privadas, com sistemas de bolsas e de financiamento, unificou o sistema de ingresso nas universidades com ENEM-Sisu, iniciou as políticas afirmativas, de permanência e de cotas (consolidadas em Lei com Dilma) e estabeleceu um sistema de avaliação e controle de qualidade do Ensino Superior (o SINAES).

Já o governo Bolsonaro entrou, desde o primeiro mês de mandato, em conflito direto e aberto com universidades e cientistas, em várias frentes. Realizou ataques ideológicos às universidades públicas, às humanidades e ao legado de Paulo Freire, interferiu na escolha de reitores, ameaçou a liberdade de cátedra, cortou recursos de custeio e investimento, cortou bolsas de pesquisa e de compra de equipamentos, e fez o sistema chegar à beira do colapso. O resultado foi a redução de vagas (perda de 85 mil matrículas nas universidades federais) e a "fuga de cérebros" para fora do país. Na ciência, no momento mais importante de defendê-la e adotar evidências científicas, durante a pandemia, o que prevaleceu foi o negacionismo e a fake-science. Como na cultura, meio-ambiente e direitos humanos, a ordem era de terra arrasada no setor.

Vejamos alguns números. No que toca às matrículas na rede pública federal, em 2003, início do 1º mandato de Lula, as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) registravam o total de 567.101 estudantes e ao final do último mandato (2010) este número subiu para 849.727, um crescimento de 66% que continuaria nos governos Dilma, até atingir 1,1 milhão de matrículas em 2016. Essa expansão se deu sobretudo graças ao REUNI, programa de criação de novas universidades e novos campi para regiões desprovidas de educação superior pública no Brasil - o que traz também novas questões pedagógicas, epistemológicas e de pesquisa vindas desses territórios, populações e suas culturas. As instituições privadas também aumentaram a oferta de vagas, passando de 2 para 4 milhões de matrículas na gestão Lula (estes e outros dados aqui citados estão disponíveis no site do SoU_Ciência e em nossos painéis).

No governo Bolsonaro, o número de vagas públicas da rede federal encolheu pela primeira vez em décadas e o comportamento das matrículas foi o oposto do registrado pelos governos do PT: em 2019, as IFES tinham 1.114.495 estudantes e em 2020 – o último ano disponível do Censo do governo federal - este número caiu para 1.030.521, revertendo a tendência de crescimento das matrículas. As matrículas em cursos presenciais nas instituições privadas estagnaram no mesmo período. O crescimento ficou por conta da EAD, com todos os riscos envolvidos, relacionados à formação precária, incompleta e não aplicada, assunto que já tratamos noutro artigo no blog.

Na comparação entre as medidas implementadas para o acesso às universidades, destacamos que, nos governos Lula, houve a reestruturação do ENEM em 2009 – o Novo ENEM –, a isenção da taxa de inscrição no exame para estudantes provenientes do ensino público, a expansão do uso do ENEM para o ingresso na Educação Superior, com o ProUni (2005) e SiSU (2010), e a política de cotas, que começou a ser elaborada em conjunto com movimentos sociais, e acabou sendo publicada em 2012, já no governo Dilma.

No governo Bolsonaro, ao contrário, presenciamos tentativas de ingerência na elaboração das questões do ENEM, para que tivessem alinhamento ideológico com o governo; atrasos nas datas de realização do exame durante a pandemia; a redução de número de estudantes se candidatando - em 2016, o ENEM contou com 8,6 milhões participantes e, em 2020, esse número caiu para 5,7 milhões, uma redução de 33%; e diversas manifestações do presidente e ministros contra a política de cotas e afirmações de que a Educação Superior deveria ser para poucos.

Quando se compara o total de investimentos nas Universidades Federais (recursos para obras, laboratórios, equipamentos, bibliotecas), o quadro é novamente esclarecedor, e estarrecedor. Em valores liquidados (pagos) e deflacionados pelo IPCA (para janeiro de 2022), o total investido no governo Bolsonaro é menos da metade em relação ao 1º mandato de Lula e menos de 1/3 comparado ao 2º mandato de Lula, levando o sistema à beira do colapso. O custeio (recursos de manutenção, limpeza, água, luz etc) das universidades federais retrocedeu a valores inferiores aos de 2004, tendo o sistema mais que dobrado em número de matrículas (passando de 560 para 1,2 milhões de estudantes), ou seja, funcionando com menos da metade dos recursos por estudante (R$/matrícula) do que no governo Lula.

Se considerarmos os valores investidos em bolsas de estudos e de pesquisa no país, em valores liquidados e deflacionados pelo IPCA (para janeiro de 2022), o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) no 1º Governo Lula disponibilizou de R$ 5,05 bilhões; no 2º governo Lula, R$ 5,34 bilhões; e no governo Bolsonaro R$ 3,5 bilhões (dados de 2022 atualizados, extraídos no dia 26/10). A Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), em 2016, ano do golpe institucional em Dilma, investia R$ 6,6 bilhões, sobretudo em bolsas de estudos, no Brasil e no exterior; com Bolsonaro chegamos a R$ 3,3 bilhões em 2021, ou seja, metade dos recursos de seis anos atrás, confirmando a tendência de cortes que desestruturam o sistema de pesquisa, com a perda de pesquisadores, que ou tiveram que buscar outras fontes de renda ou foram atraídos para o exterior.

Outra fonte decisiva para a produção de conhecimento no Brasil é o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que tem tido seus recursos bloqueados nos últimos anos a ponto de R$ 35 bilhões terem ficado parados na conta do Tesouro Nacional. Em 2021, por pressão do Governo Bolsonaro, foi aprovada a Emenda Constitucional 109, e esse recursos foram retirados, o que permitiu que o governo federal utilizasse os saldos de todos os fundos públicos para a conta do Tesouro. Ninguém sabe exatamente qual foi o destino destes recursos e a verba que deveria ter sido utilizada para financiar pesquisas, inovação, desenvolvimento de tecnologias, de bens e serviços, a formação de pesquisadores altamente qualificados, intercâmbio científico e tecnológico e implementação, manutenção e recuperação de infraestruturas de pesquisa, foi para outras finalidades. Ou seja, o que era destinado à ciência e bolsas de pesquisa tomou outro rumo e resta saber se não foi utilizado para o chamado Orçamento Secreto.

Pelo ângulo da educação e da ciência, na sua articulação com a sociedade, numa perspectiva inclusiva, democrática, estratégica e soberana, não é difícil reconhecer que estamos diante do impasse entre "civilização ou barbárie". Um novo mandato de Bolsonaro pode levar o sistema de produção de conhecimento no Brasil ao colapso total, mantendo alguns nichos de interesse do mercado, e reduzindo drasticamente nossa perspectiva cidadã e de nação capaz de construir seu próprio futuro. Um novo governo Lula terá o desafio não apenas de recompor o que foi destruído, mas de ousar avançar, cada vez mais, em direção a uma sociedade plural e inclusiva, com cidadãos informados e bem formados, que saibam fazer ciência, construir conhecimento baseado em evidências, ter discernimento e capacidade crítica para que esse maremoto negacionista e obscurantistas seja apenas parte do passado, a ser estudado pelos historiadores do futuro.

* Colaboraram com dados para este texto, pesquisadores do SoU_Ciência: Andre Luiz Dias Vieira , Jade Percassi, Mariana Moura, Thais Cavalcante Martins, Thiago Borges Aguiar, Vanessa Sígolo; e os professores Carlos Bielschowsky (UFRJ), Débora Foguel (UFRJ) e Nelson Amaral (UFG).

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