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Descrição de chapéu juros

Juros em alta, ciência e tecnologia em baixa

Rentismo da dívida tem efeitos perversos e ataca desenvolvimento com soberania

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São Paulo (SP)

O nível da taxa de juros no Brasil, em termos reais, a mais alta do mundo, levou um prêmio Nobel de economia, Joseph Stiglitz, a considerá-la "chocante" e capaz de "matar a economia brasileira". Nosso ponto aqui é destacar que juros altos também arrasam a capacidade do país de produzir desenvolvimento endógeno e soberano, investir em ciência, tecnologia e inovação.

A gana rentista no Brasil está nos levando a uma condição de neocolônia exportadora de bens primários, dependente de tecnologia externa, e sucateando a capacidade pública e privada de produzir conhecimento com autonomia, competitividade e possibilidade de atender às necessidades da população.

Fundo cinza com a ilustração de uma mulher negra de jaleco segurando um tubo de ensaio e um frasco, ao seu lado uma menina negra sentada lê um livro, no centro da imagem há um símbolo de divisão vermelho translúcido cobrindo as duas pessoas.
Babi Lopes/SoU_Ciência

Há quem entenda que o presidente do Banco Central, indicado por Bolsonaro e ligado ao setor financeiro, está atuando propositadamente para produzir recessão e queda na popularidade do novo presidente. Esse pode ser um fator conjuntural, relevante sem dúvida. Mas Campos Neto está sobretudo atendendo aos interesses da banca, como mostrou a assombrosa pesquisa de opinião da Quaest com os financistas. A questão é estrutural, o Brasil está refém dos rentistas da dívida pública há décadas. Atuando incansavelmente para que seus interesses de classe sejam vistos como os interesses gerais da sociedade, eles têm boa parte da mídia hegemônica e do parlamento trabalhando a seu favor.

Tanto Stiglitz quanto o "pai do Real", André Lara Resende, já apontaram que juros altos não combatem a atual inflação, uma vez que as suas causas não são de excesso de consumo, mas sobretudo externas (efeitos ainda da pandemia e da Guerra na Ucrânia). Além disso, o Brasil mantém o equilíbrio fiscal imposto pelo draconiano Teto de Gastos. Mesmo com os dribles realizados no governo Bolsonaro e agora com a PEC da transição, o governo tem feito superávit. Se há tendência ao desequilíbrio nas contas públicas, ele é produzido pelo próprio aumento dos juros e encargos da dívida, que arrocha o restante do orçamento público, de saúde, educação, investimentos etc.

O Brasil atualmente mantém a maior taxa de juros real do planeta e nenhum outro país desembolsa tanto quanto o nosso para amortizar a sua dívida pública. Para além da taxa básica ser altíssima, o spread no Brasil é mais alto do que noutros países, dada a concentração bancária, encarecendo ainda mais o crédito na ponta. Trata-se de um mecanismo de sucção de riqueza socialmente produzida, coletada em impostos e transferida para poucos banqueiros e investidores, em um processo de gigantesca concentração de renda. Em 2022, 46,3% do orçamento federal foi consumido com o pagamento da dívida.

A economia brasileira está sendo completamente torcida e deformada em seus propósitos. As prioridades sociais foram colocadas de ponta cabeça: pagar o investidor vem antes de garantir os direitos sociais básicos para a maioria da população. Os efeitos colaterais e perversos são muitos, incluindo forte impacto na capacidade do país gerar desenvolvimento com soberania, isto é, crescimento apoiado em ciência, tecnologia e inovação nacionais.

Em todo o mundo, Estados estão investindo pesadamente na recuperação da economia e em políticas sociais dado o impacto duplo da pandemia. Há também uma corrida por competitividade e pioneirismo em inteligência artificial, robótica, biotecnologias, energias renováveis, novos fármacos e vacinas, economia da experiência etc. Aqui, estamos com as mãos amarradas por uma elite que deixou de ser industrial para viver de renda, consumo de luxo e em paraísos na terra e fiscais.

Se o pagamento da dívida cresce e sobra menos orçamento para todas as políticas públicas, isso significa patamares achatados e cortes permanentes em ciência, pesquisa, educação superior (o que já apresentamos aqui no blog e em nosso painel do financiamento) – ou seja, perda de capacidade pública e soberana de desenvolver tecnologia e inovação nas mais diversas áreas estratégicas para o país e para o bem-estar da população.

De outro lado, as empresas de todos os setores, especialmente as empresas nacionais, de médio e pequeno porte, e cooperativas, com acesso a crédito mais caro, deixam de investir em pesquisa e desenvolvimento, inovação, design, ciclo de vida sustentável de produtos e processos, para restringirem-se ao que já fazem e em níveis ainda maiores de precarização do trabalho, sucateamento de maquinário e tecnologia ultrapassada. Com financiamento a juros altos, o empresário minimiza riscos cortando o que não é essencial, isto é, cortando o investimento estratégico de médio e longo prazo. Recua para uma posição conservadora, curto-prazista e passiva no processo produtivo, a reboque do que é feito pelos agentes da inovação, cada vez mais concentrados nos países do Norte Global e China.

Brasil, país do futuro? De qual futuro? Potência agrícola que não alimenta sua população, não produz fertilizantes e insumos necessários e adota monocultura predatória? Potência ambiental que não sabe como extrair dos seus biomas riquezas sem predação, com projetos sustentáveis? Potência hídrica, cujas águas não atendem as demandas da sociedade e estão sendo privatizadas? Potência cultural, com museus e patrimônio caindo aos pedaços, saberes ancestrais e populações originárias sob ataque, e indústria do cinema em colapso? Potência petroleira, com tecnologias brasileiras cada vez mais defasadas e exploração, refino e distribuição sendo entregues às empresas estrangeiras? Potência energética, que não avança na produção de energia renovável por falta de pesquisa, incentivo e financiamento? Potência farmacêutica, que não produz seus próprios insumos e matérias-primas (dependendo quase integralmente de importação) e que não usa nossa biodiversidade e saberes etnobotânicos? Há muito o que fazer.

Sem ciência e tecnologia não teremos condições de entender nossos problemas, reconhecer nossos potenciais, fortalecer áreas em que ainda temos competitividade relativa, abrir novas perspectivas sociotécnicas, científicas e solidárias para economias emancipatórias, reinventar o país pós-Bolsonaro, em tempos de pandemias. E, se seguirmos assim, não teremos como atender às demandas mais vitais da nossa população, que seguirá submetida à pobreza, fome, desemprego e desamparo.

Juros altos, rentismo, ciência e soberania não combinam. Ou reduzimos a renda dos detentores da dívida e os ganhos da banca financeira, ou seguiremos existindo como uma fazenda neocolonial, em desindustrialização, precarização do trabalho e cada vez mais dependente e desigual. É preciso que o basta venha dos mais amplos setores, não apenas das vozes de alguns.

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