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Presença negra no ingresso nas universidades

Ações afirmativas e heteroidentificação na garantia de direitos

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Maria Angélica Minhoto Soraya Smaili Pedro Arantes Com a colaboração de Maria Nilza da Silva
São Paulo (SP)
Uma mulher negra de cabelos dourados e uma mochila nas costas, outra mulher negra de cabelos vermelhos presos por lenço com um crachá pendurado no pescoço e um tubo de projetos nas costas, uma mulher indígena com uma faixa no peito, todas em frente a um fundo verde com um retângulo branco na metade de cima.
Babi Lopes/SoU_Ciência

Começo do ano letivo, época de ingresso nas universidades públicas. Nesse momento é comum encontrarmos no noticiário relatos sobre calouros que concorreram a vagas reservadas para pessoas pretas, pardas e indígenas - destinadas a reparar a exclusão histórica dessa população na educação superior - e que têm suas matrículas indeferidas por bancas ou comissões de heteroidentificação.

Para entendermos melhor o que está em jogo, é fundamental lembrarmos que até o final do século 20, somente 2% da população negra tinha acesso a esse nível de ensino. Segundo diversos autores, o acesso ao ensino superior, em especial das universidades de primeira linha (quase todas públicas) é um dos maiores marcadores de classe e raça no Brasil. Foi a partir de uma longa trajetória de lutas e reivindicações que as ações afirmativas começaram a ser implementadas na educação superior brasileira, com cotas nas universidades estaduais do Rio de Janeiro, em 2001.

Nos anos seguintes, outras universidades aderiram às ações afirmativas, com a reserva de vagas para estudantes oriundos de instituições públicas de educação básica, para a população negra e indígena, de baixa renda, entre outras condições. Cada universidade realizou um processo próprio de definição de critérios, considerando sua realidade local. Em 2013, porém, toda as instituições federais foram obrigadas a adotar a reserva de vagas, por meio da chamada "Lei de Cotas".

Essa política ainda hoje não é uma unanimidade. Muitos a questionam, alguns por desconhecerem o processo de desigualdade baseado no racismo estrutural, do qual a população negra é a principal vítima, outros por manifestarem o racismo de forma concreta, revelando incômodo por terem pessoas negras compartilhando os mesmos espaços sociais.

Para que a política alcance o seu objetivo, são necessários mecanismos de controle dos critérios referentes ao acesso das pessoas beneficiárias desse direito, assim como a avaliação dos resultados obtidos.

Desde o início da implementação de cotas para ingresso, algumas universidades adotaram comissões de heteroidentificação ou de homologação de suas matrículas. Essas bancas, têm realizado o importante trabalho de inibir fraudes, garantindo o acesso às vagas reservadas somente às pessoas que preenchem os requisitos necessários, o que ocorre também para as vagas no serviço público.

Essas comissões ou bancas verificam a autodeclaração de cor/raça preta ou parda tendo em vista o fenótipo do candidato, isto é, o conjunto de características observáveis que podem ser identificadas como pertencentes ao grupo racial negro.

Muitas vezes o próprio estudante, pertencente ao grupo racial negro, não se reconhece, dificultando a sua adesão ao sistema de cotas. Essa dificuldade existe por causa da falta de acesso ao conhecimento sobre a população negra, africana e seus descendentes e também pela influência que a ideologia do branqueamento ainda exerce na atualidade.

Para enfrentar a falta de acesso ao conhecimento, tivemos a alteração da lei maior da educação brasileira – a LDB, com o objetivo de tornar obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileiras nos diferentes níveis da educação, ainda que haja muito a fazer para contribuir, consolidar e difundir efetivamente esses conhecimentos.

De outo lado, para enfrentar a questão da dificuldade de identificação é preciso que nossa sociedade reconheça os danos da profunda desigualdade racial que ainda persiste no século XXI - uma realidade que deve ser questionada e superada.

Além disso, é preciso denunciar e enfrentar, por ora, as inúmeras tentativas ou casos de fraudes no sistema de cotas no Brasil. Existem pessoas que se autodeclaram negras, mas não preenchem os critérios baseados no fenótipo do grupo racial negro. A discriminação racial e o racismo no Brasil se manifestam a partir do fenótipo, como a cor da pele, o cabelo crespo e demais características fenotípicas identificadas socialmente como negras.

Sem dúvida, a atuação das bancas não é isenta de contradições, confrontos e disputas, ainda mais tendo em vista que para uma parcela da população a política de cotas não deveria nem existir. Entretanto, muitas universidades que deixaram de adotar mecanismos de verificação como um tipo de garantia contra as fraudes foram denunciadas, sobretudo pelo Ministério Público. Essas instituições estão sendo levadas a aderir a mecanismos de controle - como as comissões de heteroidentificação - a fim de preservar os direitos das pessoas que preenchem os requisitos.

A comissão de verificação é parte importante da gestão das ações afirmativas e no combate às fraudes. Sua composição deve atentar para a diversidade de representantes, incluir professores, técnicos administrativos, estudantes, membros do movimento negro e pessoas interessadas na temática das ações afirmativas, como já defendemos anteriormente neste blog. Sua atuação pode ter também um efeito pedagógico, ao explorar o tema do pertencimento racial negro, colocando-o no centro de políticas institucionais de combate ao racismo, contribuindo para que a sociedade compreenda que os sujeitos de direito dessas políticas são as pessoas propensas a sofrerem racismo.

Durante décadas o Movimento Negro reivindicou políticas públicas para corrigir as desigualdades enraizadas pelo racismo estrutural. Dentre tantas dificuldades de uma sociedade que não superou plenamente o sistema escravagista e de discriminação racial, o racismo é parte do cotidiano brasileiro e atinge mais de a metade de sua população, a negra, que representa 56,1% do seu contingente.

Nesse sentido, a resistência negra é parte fundamental para mudar essa história. Muitos anos de luta e reivindicações têm sido necessários para chegarmos até as ações afirmativas na tentativa de corrigir as desigualdades educacionais. As cotas no Brasil são frutos de uma longa luta do Movimento Negro brasileiro e de inúmeras pessoas que não se conformavam com a ausência de negros e negras no sistema educacional, notadamente no Ensino Superior. As comissões de heteroidentificação frustram fraudes, especialmente em cursos mais elitizados em que a população negra foi quase ausente durante todo o século XX. Uma atuação condizente com a defesa dos direitos subjetivos e das necessidades subjacentes ao desenvolvimento pleno do país e de sua população.

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