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Quem tem medo da Estação Paulo Freire?

Nome de educador em estação de metrô será trocado por bandeirante escravista

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São Paulo (SP)
Ilustração estilizada em cor salmão-alaranjada com o educador Paulo Freire de olhos fechados, punho direito levantado acima da cabeça e uma barba branca longa se esticando em ziguezague no chão atrás dele.
Andres Sandoval/SoU_Ciência

Paulo Freire foi constantemente atacado pelos bolsonaristas nos últimos anos, em todas as frentes, por todos os lados – e nesta semana Paulo Freire volta ao noticiário. Uma estação de Metrô em São Paulo, planejada desde 2009 e a ser construída na Avenida Educador Paulo Freire (e que por isso receberia seu nome), teve de forma inédita e logo no início do Governo Tarcísio de Freitas a denominação alterada para dar lugar a um dos mais sombrios bandeirantes paulistas, Fernão Dias (que dá nome à estrada SP-BH que tem início a 2 km do local). A decisão não parece ter sido técnica, mas política e incita o ethos de guerra ideológica que move o bolsonarismo, do qual o governador parecia se distanciar.

São inúmeros os ataques da extrema-direita a Paulo Freire, que o elegeu como um de seus principais inimigos. O educador pernambucano foi reiteradas vezes acusado como "responsável pelo fracasso da educação no Brasil"; o ex-Ministro Abraham Weintraub pretendeu demolir monumento em sua homenagem na frente do MEC; a máquina de propaganda audiovisual Brasil Paralelo dedicou uma trilogia e inúmeros vídeos para atacá-lo; um deputado do PSL (então partido de Bolsonaro) enviou Projeto de Lei em 2019 para que Paulo Freire deixasse de ser o patrono da educação; outro deputado do PSL propôs em seu lugar o catequizador Padre Anchieta; em seu centenário, em 2021, Paulo Freire foi bombardeado nas redes extremistas – o caricato empresário Luciano Hang (dono da rede Havan) postou meme dizendo que as Havaianas fizeram mais pela educação Brasileira (nas chineladas de pais em seus filhos) do que o educador; e os exemplos seriam incontáveis.

O governador Tarcísio de Freitas vinha sendo elogiado por sua postura de diálogo e não polarizada com o Governo Lula, desde o 8 de janeiro e depois na tragédia do litoral norte. Foi inclusive considerado razoável, tendo dado importantes passos na superação do extremismo e desbolsonarização na política, que é o que mais precisamos agora. Por isso, surpreendeu a notícia da mudança do nome da Estação de Metrô.

A justificativa "técnica" dada teria sido uma pesquisa de opinião do Metrô com futuros usuários para confirmar o nome (mas não foi divulgada, não sabemos data, metodologia, amostra etc.). São dezenas as estações em projetos e obras em São Paulo, mas apenas essa, com dois meses de gestão do Governador, terá seu nome alterado – fato inédito e controverso. A estação está batizada com o nome de Paulo Freire devido ao seu logradouro (uma avenida de 2 quilômetros de extensão na divisa entre São Paulo e Guarulhos). Em 2002 a avenida, que era uma pista de acesso à Rodovia Fernão Dias, foi denominada Paulo Freire por decreto municipal. Desde os primeiros estudos da companhia do Metrô o nome Paulo Freire está definido. Consta em projeto ao menos desde o Relatório de Impacto Ambiental de 2009 (então como Linha Branca do Metrô – Vila Prudente-Dutra) e no Projeto da Estação do escritório Fernandes/arquitetos associados.

O rebatismo em homenagem ao Bandeirante Fernão Dias (1608-1681) é igualmente revelador. O chamado "Caçador de esmeraldas" (como o consagrou Olavo Bilac em sua Epopeia Sertanista) também pode ser considerado "O Bandeirante assassino", na expressão de Eduardo Bueno. Como nos explica Bueno, Fernão Dias era um rico fazendeiro e mecenas da São Paulo do século 17, quando patrocinou a construção do Mosteiro de São Bento (onde seria posteriormente sepultado). Teve uma fulgurante carreira e fortuna graças à impetuosa caça e escravização de indígenas. Fernão Dias chegou a trazer de uma só vez 5 mil pessoas escravizadas e amarradas para São Paulo. Chegou ainda a enforcar o filho, ao considerá-lo líder de um motim que tentou libertar escravizados. E, na verdade, Fernão Dias nunca encontrou esmeraldas, apesar de ter morrido com um punhado de turmalinas (semipreciosas) achando que fossem as fabulosas pedras verdes.

A troca de nomes entre o educador Paulo Freire e o bandeirante Fernão Dias poderá ter razões simbólicas, históricas e políticas de fundo, que precisam ser compreendidas. Por que fazer essa modificação agora? Estamos em momento crítico, em que o noticiário abunda de denúncias contra Bolsonaro e a decisão da troca do nome fomenta as redes bolsonaristas.

A guerra híbrida, cultural e política não se dissipou no ar depois do 8 de janeiro. Estamos precisando de menos ações de polarização e mais conciliação. Tirar o nome de Paulo Freire pode acirrar disputas que vão muito além das questões eleitorais. O ideal seria discutirmos a mudança do nome a partir de amplas consultas públicas, especialmente em casos como esse, o que poderia levar inclusive à mudança do próprio nome da Rodovia Fernão Dias, por seu passado assassino.

Aliás, a trilha pela qual segue a estrada não foi aberta ou descoberta pelos bandeirantes, mas pelos povos indígenas e depois seguida pelos jesuítas. Os bandeirantes a percorreram em busca de ouro, mas também para capturar, escravizar ou matar as comunidades indígenas que por ela circulavam. Ter batizado esse caminho com o nome de Fernão Dias é mais uma expropriação e apagamento de saberes, territórios e histórias dos povos originários, que podem ser recuperados e homenageados. A rodovia é federal, caberia ao Governo Lula um eventual rebatismo. Haddad, quando prefeito de São Paulo, renomeou o famoso Minhocão, então elevado ditador Costa e Silva, para elevado Presidente João Goulart. Fica a dica.

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