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O Novo Ensino Médio já está Velho?

O que esperar depois do caos instalado nas escolas?

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São Paulo (SP)
Imagem abstrata representando livros, uma escada, um edifício e um guindaste com vigas douradas ao fundo.
Meyrele Nascimento/SoU_Ciência

Nas últimas semanas, houve ampla mobilização de setores da educação para indicar as fragilidades que caracterizam a Reforma e a implantação do Novo Ensino Médio (NEM) e pedir sua revogação. Há redução da carga horária voltada à formação geral, exclusão das humanidades como disciplinas no novo currículo, inclusão de um abstrato "projeto de vida", oferta de eletivas que pouco ou nada contribuem com a formação e variedade de itinerários formativos a serem escolhidos e que não se concretizam na prática por falta de professores nas escolas públicas, onde estão matriculados mais de 80% dos jovens brasileiros. O governo Lula está indeciso sobre qual conduta tomar e suspendeu por 60 dias a implementação do novo modelo.

Vale lembrar que, há anos, o processo de formação das novas gerações e o percurso escolar da juventude dão ensejo a disputas acirradas na sociedade e têm sido foco de intensos debates na área de educação. São desavenças em torno da definição da função social das escolas de ensino médio, das razões que levam apenas alguns jovens a bom termo, dos motivos da evasão, das enormes desigualdades sociais convertidas em desigualdades escolares, do impacto de políticas educacionais na qualidade dos sistemas e redes de ensino, entre tantos outros.

São tensões que mostram haver interesses e visões educacionais distintas subjacentes à reestruturação dessa etapa de ensino, indicando caminhos diferentes, muitas vezes contraditórios, para garantir a formação dos jovens brasileiros e seu direito à educação básica, necessário ao exercício pleno da cidadania. Parte destas visões, por determinados agentes, são dirigidas por interesses econômicos, diretos ou indiretos, da educação como negócio e do educando como força de trabalho.

Apenas um debate aprofundado e ampliado, principalmente junto aos secundaristas, sobre o que se aspira como formação integral, qualidade educativa e de socialização, permitirá estabelecer diretrizes que efetivem esse direito, viabilizando a concepção e a oferta de escolas com qualidade e interesse para os jovens. E levantes secundaristas de 2015, em São Paulo, e de 2016, no Paraná, com repercussões em todo o Brasil mostraram que os jovens querem assumir mais protagonismo na sua formação e experimentaram novos modos de usar e viver o espaço escolar. Eles têm novas questões, interesses e visões que precisam ser reconhecidas e compreendidas numa perspectiva política e pedagógica.

O histórico da etapa que hoje chamamos de ensino médio, no nosso país, tem sido repleto de Reformas idealizadas por especialistas. Todas elas, salvo engano, voltadas predominantemente para propostas de reestruturação curricular, com mudanças de disciplinas, ênfases em determinadas áreas de conhecimento e adoção de novas metodologias de ensino, como se apenas essas modificações pudessem garantir a tão almejada qualidade educacional.

Mais que insuficientes, essas Reformas revelam uma espécie de "crise de identidade" enraizada nessa etapa educativa. Uma crise que tem por base a divisão das classes sociais, uma fratura que segmenta a escola entre as que preparam a elite da juventude (condutora!) para a continuidade dos estudos em nível superior em universidades de boa qualidade, portanto com foco na formação intelectual, e outras que preparam o restante da juventude para a vida profissional e inserção imediata no mundo do trabalho, via capacitação técnica (aos filhos de trabalhadores).

A certeza subjacente a essa eterna e inconciliável tensão é que o ensino médio não é uma etapa de escolarização em si, mas deve servir ao futuro dos jovens (e do país). Por isso, segmenta os destinos de antemão via currículos, cursos paralelos de estudos, barreiras institucionais, ensino privado e público e, por óbvio, diferenças de origem social dos estudantes.

No entanto, a idade típica dos jovens matriculados nessa etapa de ensino – entre 15 e 18 anos – coloca nas escolas jovens atravessados por dúvidas intensas e arrebatadoras, muita curiosidade, desassossego, ânimo vibrante, antenas ligadas a interesses diversos e abertos a inúmeras possibilidades de vir a ser, sem que seja preciso definir cabalmente essa questão no presente. Ao mesmo tempo, são, ou deveriam ser, defrontados com as questões antigas e não resolvidas da sociedade brasileira (desigualdade extrema, racismo estrutural, retorno da fome, padrão de violência e segregação etc) e novas questões do século XXI (virada cognitiva e cibernética, novas mídias, colapso ambiental, mudança na matriz energética, mundialização financeira, crise do mundo do trabalho etc).

Por isso mesmo, a discussão sobre o ensino médio deveria ir muito além da mera instrução, até porque, querendo ou não, ele abarca todo o processo educativo, que implica (in)tensas relações interpessoais e diferentes visões de mundo, que precisam ter espaço de manifestação plena e debate em seu interior.

Todas as escolas deveriam estar abertas e proporcionar as mais variadas experiências para essa mocidade que pulsa - tanto no plano intelectual, como no cultural, político, econômico e social –, viabilizando a reflexão, o desenvolvimento de consciências vivas e de muita sensibilidade humana para os desafios do presente e do futuro.

Substituir essas múltiplas relações, e toda a sua complexidade, por uma instrução robotizada, com rotinas controladas por tempo e burocracias diversas, sem sentido, com materiais didáticos padronizados e desinteressantes, que engessam os professores, é sinônimo de matar a inteligência e a vida que pulsa na escola, colocando em seu lugar algo muito pior, como tem mostrado os reiterados episódios de violência nas escolas de todo o país.

Além disso, o que está em jogo, na atual Reforma do Ensino Médio, pouco se parece com as "velhas disputas", mencionadas anteriormente, sobre o caráter utilitarista de sua formação, isto é, o embate entre formação intelectual e capacitação técnica. Parece não haver igualmente uma iniciativa que busque a conciliação entre essas formações.

Se o "novo" modelo curricular, na letra fria da lei, afirma promover inovações e caminhos eletivos, a realidade nua e crua das escolas públicas mostra o seu verdadeiro propósito: a precarização sem precedentes do currículo, o que faria enrubescer qualquer especialista de boa fé que defenda a capacitação técnica para o futuro dos filhos das classes trabalhadoras.

Além de não encontrar condições concretas de realização, nas escolas brasileiras, os itinerários formativos foram propostos sem qualquer planejamento de contratação docente e/ou sua redistribuição que respondesse minimamente a essas pseudo-trajetórias eletivas. Não foram previstas, também, melhoria das condições de trabalho e salários dos professores, readequações nos prédios escolares, número adequado de alunos por turma, necessidades de equipamentos e materiais didáticos inovadores, enfim, condições mínimas.

Se a precarização do currículo e das condições materiais do ensino médio não favorecem aos jovens o ingresso no mercado de trabalho, que dirá a possibilidade de acesso à Educação Superior.

Os desdobramentos da atual Reforma impuseram, na verdade, uma espécie de interdição ao velho debate sobre a formação. É urgente reverter o caos instalado, o que já foi percebido ao menos pelo MEC. Que outras autoridades assim o façam. E que, vencido o momento dramático, seja possível retomar, em outras bases, o debate sobre a identidade do ensino médio, a sua finalidade em si, para além da segmentação, e os processos adequados para a formação de todos os jovens brasileiros

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