Sylvia Colombo

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Descrição de chapéu América Latina

Primeira semana de Gabriel Boric, entre animação e tropeços

Presidente do Chile topou com a realidade, mas também sinalizou com firmeza por onde caminhará

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Santiago

Vivem-se dias de entusiasmo e apreensão em Santiago.

Nas ruas que estiveram conturbadas por tanto tempo desde outubro de 2019, ainda há protestos, menores, mas também festas e reuniões de jovens politizados. O lugar que ocupava a estátua do general Baquedano, epicentro das manifestações, segue vigiado pelos carabineros, e o pedestal da estátua foi pintado com as cores da bandeira da Ucrânia, mostrando que o local continuará sendo o de marcar posições políticas.

Às portas do palácio de La Moneda ou à entrada de sua nova casa, no bairro popular de Yungay, há quem leve presentes e cartas a Gabriel Boric. Conversando aleatoriamente com outros habitantes da capital, alguns mostram desconfiança. "Esses garotos não sabem em que estão se metendo", dizem.

Um dos primeiros gestos do jovem mandatário foi derrubar uma centena de processos ainda incipientes contra manifestantes de 2019, mas a medida não é suficiente para liberar todos os que estão atrás das grades de um modo que a nova gestão considera irregular, sem julgamento e sob a acusação de "incitar a violência".

O gesto do presidente foi um sinal ao Congresso, afinal, é ao Senado que caberá aprovar ou rejeitar um indulto a essas pessoas. Boric diz que "torce para que o aprovem", mas não revela qual será o plano B caso isso não ocorra. Usará a possibilidade que a lei lhe confere de dar ele mesmo um indulto presidencial? Isso soará autoritário ou desrespeitoso com relação a outras instituições? Talvez. É por isso que Boric "torce". O governo não tem maioria no Congresso.

Entre as milhares de frases de efeito cravadas na pedra nas ruas de Santiago, está esse pedido com muito destaque, o de que Boric "não se faça o distraído com os presos políticos". Boric sabe que, neste quesito, reside o apoio de boa parte da esquerda mais radical, e não atendê-lo num tempo aceitável terá um custo político.

Mas é na área econômica que parecem estar seus principais problemas no momento. Por um lado, há uma alta cifra de inflação anual, 7,7%. Esse aumento se deu, em parte, por conta da polêmica autorização que o Congresso deu, durante a pandemia, para a retirada, em cotas de 10%, das aposentadorias que são geridas por fundos privados. Converse com dez pessoas em Santiago e ouvirá que as dez retiraram o que lhes tocava, sejam elas de esquerda, de direita, pobres ou ricos, politizados ou não.

"Se ninguém mais acredita no sistema, se é a primeira coisa que vão redesenhar neste novo modelo, prefiro o dinheiro para gastar já, para reformar a cozinha ou pagar minhas contas", me diz uma amiga, da bolha dos muito bem informados. "Ih, tirei tudo e consertei minha casa inteira, não fiquei com um centavo", me diz um taxista.

O presidente Gabriel Boric e a ministra do interior, Izkia Siches, que protagonizaram as primeiras dificuldades do governo
O presidente Gabriel Boric e a ministra do interior, Izkia Siches, que protagonizaram as primeiras dificuldades do governo - Pablo Vera/France Presse

A questão é que essa retirada, cujo objetivo era de ser emergencial e ajudar a conter o impacto da pandemia na economia, já vai pela sua quarta edição _cada uma delas deve ser aprovada pelo Congresso. Com os saques, mais os benefícios dados pelo Estado para ajudar os que ficaram sem emprego com a pandemia, o consumo aumentou, e também os preços. Agora, Boric, um defensor das ajudas do Estado, deve falar desde um lugar diferente. Como presidente, sabe o dano que as retiradas causam à economia e condena o que o Congresso está por fazer nas próximas semanas: votar para liberar o quinto retiro.

Se isso ocorrer, não lhe caberá outra alternativa do que acelerar a reforma tributária, em que pretende cobrar mais dos mais ricos, para poder realizar sua reforma da previdência, transformando o modelo totalmente privado e injusto das aposentadorias em um em que haja participação do Estado e uma pensão mínima aos que não têm nenhuma condição de aportar nada.

Para isso, precisa aumentar a arrecadação. A seu favor, está o fato de que o cobre, principal produto exportado pelo Chile, está com cotação alta no mercado internacional. Mesmo assim, a ginástica é complicada. E já se escuta de modo surpreendente o antes impetuoso líder esquerdista pedir cautela aos congressistas e que por favor não aprovem o quinto retiro, igualzinho como fazia... Piñera, seu antecessor.

Com os pacotes de ajuda e a reativação econômica, o Chile cresceu 11,9% no ano passado, mas para este ano, consultoras apontam que essa cifra não passará dos 2,9%. Daí que, sem ajustes ou novos impostos e investimentos, o cobertor ficará curto para aumentar o cobertor social e a participação do Estado na economia, como prometeu Boric.

Os investidores estrangeiros estão assustados desde o primeiro dia, o que fez com que as ações das companhias chilenas nas bolsas desabassem nas primeiras semanas. Desde sua eleição, mais de US$ 50 bilhões deixaram o país. Boric espera acalmá-los com gradualismo nas mudanças e colocando um tecnocrata respeitado no cargo de ministro das finanças, Mario Marcel.

Outro encontrão entre o que se promete e o que se faz se deu quando Boric foi informado que um de seus ministros havia convidado um padre jesuíta para integrar um programa de construção e distribuição de moradias populares. Boric foi rápido, mas a imprensa teve tempo de questiona-lo e critica-lo. Está bem ter dito desde o início que o governo é laico, mas vetar escolhas de ministros a quem deu carta-branca é correto? Há um sinal de autoritarismo aí? Ficou anotado.

Mas o episódio mais tenso da semana foi a tentativa de enviar a ministra do Interior, Izkia Siches, cargo mais importante do governo depois de Boric, a uma das regiões mais afetadas pela violência e que segue em estado de exceção, ou seja, militarizada. Trata-se do sul do país.

Boric considera que os dois estados de exceção que vigoram hoje merecem dois tratamentos diferentes. Que o do norte, marcado pelos enfrentamentos com entre moradores e a chegada volumosa de estrangeiros é mais grave e necessita um apoio extra do Exército por mais um tempo para que se desenhe uma nova estratégia para que evite os confrontos frequentes entre moradores e imigrantes. O mandatário é um defensor da ideia de uma distribuição de "cotas" de imigrantes, em geral venezuelanos e haitianos, entre os países da região.

Já o sul, marcado por uma disputa de terras e de soberania entre população originária, principalmente os mapuche, e moradores não indígenas, é um conflito ancestral. "Sou contra estado de exceção aí, porque não se trata de um problema pontual, é um problema histórico". Para o presidente, o diálogo seria a principal ferramenta e seria desnecessário continuar com a área militarizada.

Só que, ao tocar terra de conflito, a ministra Siches sofreu uma ameaça, uma intimidação. Sua comitiva foi parada, deram-se tiros para o ar, e ela teve de ser evacuada para um lugar seguro.

Do anonimato em que se havia metido desde o resultado da eleição, o ultradireitista José Antonio Kast não perdeu tempo e tripudiou, "que a ministra esteja bem, mas que se dê conta de como vivem com medo milhares de chilenos todas as noites no sul do país".

O incidente foi pequeno, mas simbólico e deixou um sinal de alerta no ar. Mais que apenas promover diálogo, o governo Boric precisa, rapidamente, colocar alternativas concretas sobre a mesa.

Afinal, sabe-se lá quanto tempo durará a trégua da oposição e a lua-de-mel com os apoiadores.

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