Sylvia Colombo

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Descrição de chapéu América Latina jornalismo

Constituição chilena é farol democrático, não uma revolução comunista

Desinformação e 'fake news' empobrecem processo que se desenrola dentro da institucionalidade

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Buenos Aires

Conversei nesta semana com meu amigo, escritor e jornalista Patricio Fernández, 52. fundador do excelente semanário chileno The Clinic e autor de alguns livros sobre a América Latina. Pato, como o conhecemos, mergulhou nos últimos anos na aventura de ser parte da Convenção Constitucional, elegeu-se, ajudou a escrever leis e mergulhou no processo que começou a ser movido pela juventude política hoje no poder no Chile.

Da experiência, ele saiu feliz pelo rascunho da nova Constituição entregue nesta semana, e, depois do plebiscito vinculante e obrigatório de 4 de setembro, se encerrará para escrever a história desses tempos, desde os protestos de 2006, 2011 e 2019 até o incerto resultado da votação. Mal posso esperar por este livro.

Algumas coisas o preocupam. "Nós deixamos de fora todas as ideias radicais, aquelas que tiveram enorme repercussão na mídia, muito mais do que as iniciativas positivas e modernas que, sim, foram incluídas e mantidas. Ainda assim, muita gente acha, por exemplo, que vamos expropriar terras e todos os recursos naturais, o que não é verdade. Nós fizemos um documento que inclui as minorias marginalizadas no Chile há séculos, indígenas, mulheres e afrodescendentes, não deixamos brecha para o fim da propriedade privada e ainda reforçamos a ideia de um Estado de Direito. Fizemos tudo isso de forma democrática. Ou seja, o normal numa sociedade moderna", enumera, "e, mesmo assim, estão nos retratando como se estivéssemos tramando, durante todo esse tempo, uma revolução bolchevista".

Ato de manifestantes pró-direito ao aborto em frente ao Tribunal Constitucional do Chile, em Santiago, na época da discussão sobre a despenalização da prática no país - Jorge Villegas - 28.ago.17/Xinhua

A sensação é verdadeira quando se lê a mídia conservadora local ou os debates nas redes. E parece distante aquela noite de 25 de outubro de 2020, em que vi as pessoas saindo às ruas eufóricas, celebrando o fim da Constituição de Pinochet. No plebiscito daquele dia, 80% dos que foram às urnas pediram uma nova Carta. E mais, pediram uma nova Carta redigida por uma Assembleia de composição aberta, dando espaço a várias figuras da sociedade e independentes, além de representantes das ancestrais comunidades indígenas.

Porém, nos dias, semanas e meses seguintes, a propaganda contra não deu trégua, por meio de memes esdrúxulos que diziam que o Chile "viraria a Venezuela" (outra vez o mantra vazio da direita, sim, outra vez), ataques à participação dos indígenas com rotulações racistas e a escancarada a misoginia de uma sociedade patriarcal contra quem tantas jovens mulheres saíram a manifestar-se nos últimos anos.

As piores "fake news" são aquelas que propagam que o Chile, de um suposto "exemplo de modelo econômico" (o que nunca foi, caso contrário, porque tanta gente demonstrou insatisfação? Por que os idosos hoje não tem uma aposentadoria que alcance para comprar remédios?) viraria uma espécie de ditadura comunista.

Não bastassem as "fake news" e a desinformação, uma publicação séria como a The Economist retratou, nesta semana, a Constituição chilena com um rolo de papel higiênico. Isso. O humor britânico se rebaixou a ponto de se aproximar de nossa tão famosa e infame mamadeira de piroca.

A desinformação joga pesado para que essa visão se espalhe facilmente. Muitos não sabem, por exemplo, que a Constituição, em muitos casos, terá artigos que ainda passarão por uma regulamentação que terá de ser aprovada no Congresso, caso do aborto, da eutanásia, da plurinacionalidade e da autonomia dos povos indígenas. Dizem que o texto é evasivo, mas não sabem que ele sempre foi pensado como um conjunto de leis que estabelecem as diretrizes gerais sobre os temas nele tratados. Como eles serão aplicados, regulamentados e colocados em prática serão tarefa a ser resolvida pelo parlamento e, depois, pelas autoridades responsáveis. E seria bom reforçar que o novo parlamento tem uma grande presença da direita. Portanto, a possibilidade de que esses artigos sejam abrandados, amenizados, antes de postos em prática, depois de um debate político apropriado, é enorme.

A questão das autonomias indígenas é indignante. A visão geral dos que se alimentam de desinformação é a de que os indígenas habitarão territórios sob os quais apenas eles irão legislar e governar e que o Estado não estará presente. Não é verdade. A Constituição propõe que a autonomia seja decidida em acordo com as comunidades. A chamada Justiça indígena estará vinculada à Justiça comum. Acham que isso é uma novidade? Está na Constituição da Bolívia e na do Equador, e não se trata mais do que saldar dívidas com uma população que está no Chile sofrendo abusos desde muito antes de o Chile ser um país.

O semanário britânico até contou quantas vezes aparece a palavra "gênero" no documento: 39. Eu diria, que 39 é pouco. Se não o leitor não quiser aprofundar-se em história, que leia os romances da mais lida escritora em língua espanhola da América Latina, Isabel Allende, e aí verá o quanto a questão de gênero é urgente no Chile. Se faltam números, vão alguns, do próprio governo chileno: 50,3% mulheres casadas viveram pelo menos uma vez um caso de violência física ou sexual, 16,3%, de abuso psicológico, 42,7% sofreram violência sexual antes dos 15 anos, enquanto 22% foram ameaçadas com armas. e, para piorar tudo, 60% vivem abaixo da linha da pobreza.

A nova Constituição do Chile pode sofrer a mesma injustiça que o acordo de paz do governo colombiano com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Na época, pouquíssima gente leu o documento inteiro (sim, é verdade que ambos são enormes), mas decidiu votar contra porque se informaram mal, via redes, via pastores, via políticos com interesses ameaçados. E acabaram votando "não".

Esperemos que os chilenos não sofram o mesmo destino. Quem pode querer de volta a Constituição de Pinochet, que ignorava as aparentemente temidas "questões de gênero" e as completamente ignoradas reivindicações dos indígenas, que, no caso chileno, compõem 12% da população?

A campanha para dar errado já é enorme. Que tal uma campanha para entender do que se trata a nova Carta, antes de opinar?

Não será melhor isso do que manter o que sempre foi a regra no Chile, ou seja, uma fricção constante entre famílias governantes e povo invisibilizado. Assim vive o Equador, onde os indígenas, a cada tanto, são brutalmente reprimidos e se remenda a questão com acordos que, todos sabemos, irão fracassar a médio (ou talvez curto) prazo. Não é melhor resolver as diferenças dentro dos espaços democráticos estabelecidos do que na violência das redes sociais e das ruas?

O Chile está apontando para uma saída democrática para suas enormes diferenças históricas. Deveria ser um exemplo, e não uma vidraça a ser apedrejada.

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