Sylvia Colombo

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Descrição de chapéu jornalismo

Bolsonaristas disparam 'fake news' sobre a Argentina

Discurso bolsonarista tem usado narrativa alucinada que indica que Brasil e Argentina "virarão" a Venezuela

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Buenos Aires

É muito difícil encontrar motivos para defender a atual condução da economia argentina ou elogiar o estado de suas instituições ou mesmo a atuação do governo, que é errática, fraca, e, sobretudo, dividida entre as duas principais correntes dentro da coalizão peronista do poder, que estão mais enfrentadas entre si do que se tratasse de um embate entre um partido de situação e outro de oposição.

Em um mundo normal, ninguém imaginaria que a realidade pura e simples já fosse o suficiente para que o olhar estrangeiro sobre o país fosse o de preocupação, com a taxa de inflação chegando a 100% ao final do ano, com a saída dos investimentos estrangeiros, com restrições a importações e a compra de dólar, com o excessivo protecionismo. E, mais grave que tudo, as taxas ascendentes de pobreza, que já colocam abaixo da linha 40% da população, sendo mais de 50%, crianças, segundo dados do Indec (o IBGE argentino).

O quadro não é bonito, claramente. E, como vimos, razões para criticar a Argentina há muitas.

Porém, mesmo os economistas das mais divergentes áreas vão concordar em algo, a tragédia que estamos vivendo na Argentina remonta a uma série de más administrações da economia que vem de décadas, e que tiveram assinaturas de peronistas, liberais, protecionistas, pró-abertura, desde antes da ditadura militar (1976-1983).

O que absolutamente não se ouve por aqui entre os que entendem da formação da crise argentina é a explicação simplória de se deve apenas a uma delirante implementação do comunismo. A Argentina jamais foi comunista. O peronismo, com sua salada nacionalista, anti-yanqui, com agenda social, em algumas ocasiões mais, noutras menos, abertas ao livre mercado, não se pode denominar comunista. Parte dele flertou abertamente, inclusive, com o fascismo. E a sua própria existência fez difícil que, ao longo dos tempos, sobrasse espaço para a a formação e a atuação de um partido puro-sangue de esquerda renovada, como seria o PSOL no Brasil, ou a Frente Ampla, no Chile.

Portanto, apenas os que se alimentam do esgoto de fake news do bolsonarismo estão convencidos de que a Argentina é comunista.

Mas os criadores de "fake news" colocam a reeleição de Bolsonaro acima de tudo, e estiveram por aqui nos últimos dias, comandados por Eduardo Bolsonaro, de tom arrogante, a entrevistar argentinos que não gostam de Cristina Kirchner e que, por isso, claro, automaticamente estão a favor de Bolsonaro, mesmo sem a maioria sem saber quase nada do que diz respeito ao personagem. Não há como não ver soberba quando a câmara se aproxima do venezuelano com problemas para se manter e pedir que ele fale contra Cristina, contra Maduro, contra Lula e depois vire as costas a ele e seu drama. A falta de empatia de Eduardo é escancarada.

O filho do presidente não se privou de ir a restaurantes chiques, gastar dinheiro ao estilo Pablo Escobar, pagando jantar para muitos, em restaurante caro, em cash. Curioso, se no Brasil as meninas no abrigo em Brasília sofrem preconceito, assim como muitos imigrantes venezuelanos quando passam a fronteira brasileira, aqui na Argentina a aceitação é total. O venezuelano não só é parte da vida portenha como a alegrou. O famoso mau humor dos habitantes da cidade se amainou muito com a contribuição dada pelo gesto amistoso, de suas piadas, de sua música e de sua cultura, que hoje já são parte indispensável de Buenos Aires.

Se o "perigo" de que a Argentina vá virar a Venezuela de fato existe, não me parece real. O que sim, vejo, é que com a chegada de cada vez mais venezuelanos aqui, instalou-se um clima de relaxação nos costumes, de informalidade nas relações, um cuidado carinhoso pelos amigos, a simpatia caribenha que muito faz bem ao taciturno ancestral 'homem brutus cultivado no contrabando do porto", que deu origem ao portenho.

Apoiador de Cristina Kirchner em vigília do lado de fora de sua casa, na Recoleta
Apoiador de Cristina Kirchner em vigília do lado de fora de sua casa, na Recoleta - (Luis Robayo/France Presse)

Nos últimos anos, a situação argentina vem virando o tema preferido pelas usinas de "fake news" do discurso bolsonarista. Talvez cansados da crítica a Cuba e Venezuela, que se usou tanto por uma direita latino-americana que também sucumbiu nos últimos tempos, a moda agora é apontar um novo perigo comunista na América do Sul: "a Argentina".

Cubro a Argentina há mais de 10 anos e desde então a direita local dizia que o país, se governado pelo kirchnerismo "iria virar a Venezuela". Em todo esse tempo e até hoje, os kirchneristas estiveram no poder, salvo os fracassados 4 anos de Macri. Nenhum sinal de "venezualização" foi diagnosticado. A crise humanitária vem sendo contida com assistencialismo (claro, pode-se debater o assistencialismo), mas o fato é que não se vê argentinos cruzando as fronteiras com o que sobrou de suas casas às costas, como se assiste diariamente na Puente Simón Bolívar e suas "trochas", todos os dias. Apenas na Colômbia, estão 2,5 milhões dos venezuelanos que saíram praticamente à pé desde suas casas. Não há fluxo minimamente parecido de argentinos buscando cruzar fronteira do Brasil, como uma vez chegou a alertar o próprio Bolsonaro, ou de outros vizinhos com uma mão na frente e outra atrás. Na Argentina, tampouco há centenas de presos políticos sem julgamento em suas Tumbas e Helicoides por discordar, nem do kirchnerismo neste momento e nem do seu antecessor, Mauricio Macri.

Sobre o país, não há relatórios das Nações Unidas que apontem para abusos de direitos humanos, ou a existência de milhares de presos políticos ou de outros tantos de exilados. Se, como os bolsonaristas desejam ver, ou a direita internacional capitaneada pelas ideias do VOX espanhol assinala, ainda assim os kirchneristas teriam de fazer muito para que a Argentina "virar" a Venezuela, estão no mínimo muito atrasados, se é que esse é o plano.

Nesse esse exercício surrealista e improvável, jamais ocorrido de fato, de imaginar que países possam "virar" outros países, também vem delirando a direita chilena, que crê que a eleição de Boric será a implementação do populismo no Chile, algo que jamais esteve em seu DNA histórico deste que é, desde sua democratização, o mais solene e respeituoso de sua instituição republicana na região, ao lado do Uruguai. Quaisquer cifras macroeconômicas, índices sociais ou educativos colocam o Chile a anos-luz da Venezuela.

Nessa corrente de pensamento delirante da extrema-direita, países em que políticos progressistas vencem as eleições parecem tocados pelo Apocalipse Zumbi, logo a população será composta de mortos-vivos programados para invadir terras, cultivar drogas, comer criancinhas e espalhar a depravação total, porque, afinal, como todos sabem, os zumbis adoram a ideologia de gênero.

O caso é que este período eleitoral do Brasil acelerou um fenômeno que já vinha-se vivendo por aqui. Nos últimos anos jornalistas, acadêmicos e diplomatas brasileiros que se dedicam a estudar e acompanhar a Argentina temos recebido de nossos amigos, familiares, "tias do Zap" e mesmo de gente que conhecemos e de quem pensaríamos, "mas não, esse sujeito é informado, não vai cair num vídeo tosco desse" (pois, mas caem), as mais delirantes imagens.

A cada delírio vomitado pelo esgoto da desinformação bolsonarista-brasileira, do lado de lá, começamos a nos dedicar, do lado de cá, a exercer um pouco de "Argentina-explaining" para desmentir os delírios.

Às vezes são vídeos, como o que recebeu um parente, de um sujeito que se dizia "ex-militar", que denunciava invasões de terra por parte de hordas de sem-teto no interior. Ele não tinha nome, a cena não mostrava o caso de modo claro, e nem dizia onde era. O parente estava seguro de que era na Argentina, porque "falaram para ele". Depois de várias negativas, de até mostrar que o conflito que ele registrava ela na Colômbia num protesto anti-Duque. O sujeito se disse convencido, pero no mucho. "Mas você está bem, né?".

Outra fake news muito recorrente é a de que na Argentina esteja faltando carne. Sim, carne. Aquela das "parrillas', dos 'asados", do filezinho à milanesa, da cultura argentina por excelência. Foram tantas vezes, que uma colega de profissão, já cansada de explicar, fez um vídeo, visitou vários açougues, filmou, e pediu que se enviassem imagens de açougues de várias partes do país para desmentir, publicou, com lugar, data e endereço.

Para quem não sabe, a Argentina, embora não seja hoje o principal provedor de carne da região e que, para os mais humildes, seu preço de fato esteja alto, ainda é dos povos da região os que mais se alimentam de proteínas diariamente, diferente de muitos de seus vizinhos.

Esta, na verdade, é a principal falha dessa correlação lunática, de que faltará comida na Argentina em seu caminho para se transformar em Venezuela. Se o kirchnerismo está nessa luta de modo tão empedernido há mais de uma década, porque não há desabastecimento nos supermercados argentinos, nem saques, nem prateleiras vazias? Porque a Argentina é um produtor de alimentos, antes de mais nada, e a Venezuela, nunca foi. Podem estar caros, podem precisar de subsídios, sim, mas uma das principais razões pelas quais a fome não grassa na Argentina como o faz na Venezuela é porque aqui há produção de alimentos, enquanto a economia venezuelana depende muito mais de importações e dos empregos do Estado, estando mais voltada ao petróleo. Essa pequena confusão ocorre, entre outras coisas, porque as pessoas não leem uns livrinhos antes de soltar sua verborragia nas redes, não buscam conhecer o contexto histórico dos países sobre os quais desejam pontificar, seja ele a Venezuela, a Argentina, o Peru? Economizariam a surpresa de se darem conta de que são todos direrentes.

Estive num bandejão popular recente, no conurbano bonaerense, onde comem aqueles do bairro que não têm como comprar os itens no mercado. Era um dia de semana qualquer, e o almoço era um sopão de carne, com feijão e vegetais. Os precários bandejões que visitei na Venezuela, no bairro do Petare, só tinham proteína se um dos moradores conseguia uma doação, senão era arroz, harina P.A.N. para umas arepas, queijo, feijão.

Outro exemplo de como a trajetória e a história particular de cada país impede essa transformação de um país em outros está no filme "Argentina, 1985", que pode ser visto agora pelo streaming. Ali, vê-se uma sociedade que julgou os abusos de seus repressores quase que em tempo real, algo que lhe rendeu uma maturidade cívica para colocar os militares atrás das grades e enviar os demais à caserna para que nunca mais se atrevessem a intrometer-se em política, e muito menos distribuir violência política em larga escala. Enquanto isso, a ditadura chavista fez o contrário, deu mais poderes e regalias aos poderosos das Forças Armadas, que garantem o sistema de pé no país.

Quem viu uma diferença essencial aí, vê que falta muito para a Argentina virar a Venezuela.

Chamado a falar num programa alinhado editorialmente ao liberalismo argentino, Eduardo Bolsonaro foi firme ao se colocar como "anti-comunista", colocando na mesma leva de países comunistas, Colômbia, Peru, Chile, Nicarágua, Cuba e Argentina. Alguém do painel perguntou, "o senhor acha que a Argentina é comunista''. Bolsonaro: ''todos buscam uma coisa tipo China''. O colega, Jorge Giaccobe, retruca: ''Mas se fosse China teríamos resolvido nosso problema de pobreza". Bolsonaro ficou sem resposta. Na primeira vergonha da sessão. Na outra, lhe perguntaram, "você está gravando nossa vida aqui para usar de anti-exemplo na campanha?" Bolsonaro titubeou, mas era isso mesmo. Nos dias seguintes, as boas recepções de Bolsonaro por aqui ficaram restritos a seus apoiadores mais fieis, como a curiosa dupla de "jornalistas bolsonaristas" Maria Laura Assis e sua irmã, militantes nas redes e difusoras de fake news bolsonaristas argentinas com milhares de seguidores.

A mais recente "fake news" construída no Brasil sobre a Argentina e que jornalistas sérios e independentes que ainda atuam no país tiveram de desmentir foi a de que o governo de Alberto Fernández teria determinado que quem herdasse qualquer propriedade a partir de agora não teria direito sobre ela, uma vez que passariam ao Estado.

Isso jamais existiu, nem em formato de debate no Congresso, de projeto de lei, de decreto e nem como propaganda de campanha. Nossas tias do Zap ainda mandam isso do Brasil: "Li que todo mundo que morre tem de deixar tudo pro Estado". Não, tia querida, relax.

O Brasil deveria assistir a "Argentina, 1985" com vergonha, mais que nada, para que víssemos o que podíamos fazer e não fizemos.

A Venezuela fez? Nada disso. Pior, continua mantendo presos políticos e praticando torturas nas profundezas de tumbas como o Helicoide e a Tumba. A Argentina jamais irá abrir mão de seus mais de 900 julgamentos a repressores, espalhar a impunidade, só para "ir no caminho da Venezuela". Seria um "twist" impensável de roteiro.

Mais, a Argentina recentemente aprovou o aborto, apenas pela vontade da mulher, iniciativa levantada por grupos sociais organizados que pressionaram políticos de direita e de esquerda _o primeiro a leva-lo à votação foi Mauricio Macri, sendo aprovado na gestão seguinte. Hoje, o direito é reconhecido no país.

Hoje, assim como no Uruguai, o procedimento foi aceito pela sociedade, com algumas exceções pontuais. Alguns grupos religiosos se opõem, mas são muito minoritários, vingou o bom senso. Alguém é capaz de ver isso entrando no pacote "virar a Venezuela" da Argentina? Um retrocesso como esse não enfureceria as mulheres? Até porque o pacote chavista para as mulheres é sexista e homofóbico por natureza.

Tremenda salada fazem os bolsonaristas ao tentar afirmar que Chile, Colômbia, Argentina, Venezuela, Nicaragua e Cuba são comunistas. Cuba, Venezuela e Nicarágua são ditaduras, difícil ver nada de comunista num regime totalitarista. Chile e Colômbia têm uma nova esquerda no poder com enormes desafios e visão renovada sobre como enfrentá-los. Nenhum dos dois renunciou ao capitalismo ou às instituições democráticas. E a crise Argentina tem mil fatores, muitos deles históricos, nenhum deles é o comunismo.

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