Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Rússia

Enfrentar crise da Ucrânia com LSD não seria a ideia mais louca

Psicodélicos ajudaram a encerrar Guerra do Vietnã; empatia faz muita falta hoje

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São Paulo

Que tal pingar ácido lisérgico na bebida dos negociadores do impasse entre Rússia e Otan sobre a Ucrânia? Parece coisa de maluco, mas algo assim já foi tentado --e há lógica no argumento de que iniciar uma guerra ali, hoje, equivale a uma ideia muito, muito mais doida.

A incrível história apareceu no Boletim dos Cientistas Atômicos e envolveu dar MDMA (ecstasy) para oficiais soviéticos em 1985. A dica veio pelo físico e colega Cássio Leite Vieira (não é parente), um dos melhores jornalistas de ciência do Brasil, hoje refugiado em Buenos Aires.

Tanque de guerra britânico em campo de neve da Estônia
Soldados britânicos participam de manobras militares em território da Estônia - Alain Joccard/AFP

A trama tem como personagem central Carol Rosin, que havia sido especialista da empresa aeroespacial Fairchild Industries e depois fundou o Instituto para Segurança e Cooperação no Espaço. Há 37 anos, trabalhando como consultora em Washington (DC), ela foi a Moscou para negociações nucleares do governo Ronald Reagan com cientistas e militares russos.

Rosin levava na bagagem uma pacoteira com pílulas de MDMA. Era a base do plano desenvolvido com Rick Doblin, um entusiasta de psicodélicos que conhecera no Instituto Esalen, da Califórnia. Figura assídua neste blog, Doblin lidera hoje a pesquisa mais avançada para regulamentar um psicodélico (MDMA) como tratamento de um transtorno mental (estresse pós-traumático).

Rosin levou centenas de pílulas para o apartamento de amigos na capital russa. Eles chegaram com dezenas de frascos de remédio, encheram os vidrinhos e se responsabilizaram por distribuir os tabletes entre pesquisadores e militares que viessem a participar das tratativas nucleares.

"Foi a experiência mais amorosa e maravilhosa que alguém poderia possivelmente ter", disse Rosin a Robert K. Elder, para o boletim. "Não era para curtir um barato, não era para dar uma festa. Não. Era uma questão de paz, amor e cura --e de espalhar isso pelo mundo."

Rick Doblin, da Maps, fala na Breaking Convention sobre teste clínico de MDMA contra estresse pós-traumático - Mercelo Leite/Folhapress (2019)

Não se sabe quantos negociadores de fato ingeriram MDMA, se é que isso de fato aconteceu. Há quem duvide, como disse o jornalista Michael Pollan ao boletim, que enviados americanos tenham tomado a droga em terreno hostil, o que soa mesmo para lá de improvável --assim como a perspectiva de que isso possa ter influenciado decisivamente o rumo das negociações.

Por outro lado, é inegável que o composto MDMA, também conhecido como bala, molly e Michael Douglas, predispõe qualquer pessoa a ouvir os outros e dialogar pacificamente. Isso porque ele ocasiona uma inundação de empatia em quem a toma, como já testemunhou este jornalista.

"A ideia era que, se eles [negociadores] pudessem trabalhar com seus medos e traumas e sentir sua conexão com a humanidade, então isso poderia servir de ajuda", argumentou Doblin a Elder. Naquela época, corria entre jovens a noção de que psicodélicos poderiam salvar o mundo, abrindo as consciências para o valor da vida, da paz e do amor.

Soa ingênuo hoje, com o mundo sufocado em maledicência, cancelamentos, notícias fraudulentas e ódio disseminados pelas redes sociais. Cabe lembrar, porém, que drogas alteradoras da consciência (maconha, LSD e psilocibina à frente) formaram parte definidora da chamada contracultura, o movimento hippie dos anos 1960/70 que contribuiu para enterrar a Guerra do Vietnã em 1975.

Não foi só a contracultura, decerto, mas a progressiva revelação dos fracassos militares no Sudeste Asiático (para não falar das atrocidades, como uso de napalm e massacres como o de My Lai). Um golpe fatal na imagem da campanha militar se dera com a revelação dos Documentos do Pentágono (Pentagon Papers), em 1971, e aqui também os psicodélicos podem ter exercido um efeito marginal.

Os documentos mostrando que quatro presidentes americanos haviam enganado o público sobre a guerra e seus objetivos foram vazados para a imprensa por Daniel Ellsberg. Ellsberg se identifica hoje como uma "pessoa dos psicodélicos", conforme relata Adele Meyer na newsletter Lucid News.

Homem chamado Daniel Ellsberg, cabelos brancos, terno azul, gravata vermelha, junto a cabines telefônicas vermelhas de Londres
Daniel Ellsberg, aos 82 anos, que divulgou estudo revelador sobre a Guerra do Vietnã, em Londres - Stephen Hird/Reuters (2014)

O ex-funcionário da Rand Corporation, onde copiara milhares de páginas do relatório comprometedor, não esconde que tomou LSD centenas de vezes. Ele chegou a ser processado pelo vazamento e arriscou-se a pegar 115 anos de cadeia, mas as acusações acabaram retiradas.

Na primeira de três partes da entrevista que Lucid News começou a publicar em 24 de janeiro, Ellsberg afirma que o LSD não teve relação direta com a decisão de vazar o relatório. Sua primeira viagem lisérgica havia ocorrido em 1960, e ele passou a copiar os papéis oito anos depois. Nesse meio tempo, passou dois anos no Vietnã.

Por outro lado, o ácido era coisa comum no círculo de pacifistas que frequentava. Ainda hoje Ellsberg diz acreditar que uma mudança profunda da consciência seja necessária para o mundo melhorar e enfrentar a crise climática, entre outros flagelos, mas não está seguro de que isso venha a acontecer nem de que psicodélicos possam acelerar a transformação.

"A percepção com o ácido, penso eu, confirma um lado do que Albert Einstein disse uma vez, que há duas maneiras de olhar para o mundo. Uma é que milagres não existem", disse Ellsberg a Meyer. "A outra é que tudo é um milagre. Acho que uma percepção muito clássica do ácido é que aquilo em que estamos envolvidos, em que estamos imersos, sabe, tudo é miraculoso.

Para o homem que deu ao mundo os Documentos do Pentágono, coisas que nem sequer imaginamos de fato acontecem, é verdade. São como milagres, que felizmente ocorrem: "Obviamente, é muito fácil acreditar em milagres sob efeito do ácido. E o próprio ácido é um milagre!

Do jeito que as coisas caminham mal em torno da Ucrânia, um milagre viria bem a calhar.

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