Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Redes sociais turbinam polêmicas também na ciência psicodélica

Estudo sobre depressão e cogumelos detona troca agressiva de tuítes e réplicas

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São Paulo

Esqueça aquela conversa segundo a qual pessoas que tomam e pesquisam psicodélicos são mais tolerantes, compassivas e pacíficas. As redes sociais estão aí para tirar todo mundo do sério, inclusive psiconautas, em especial quando se trata de conquistar ou preservar notoriedade (e verbas de pesquisa, claro).

O último rififi no Twitter opôs duas celebridades do renascimento psicodélico, Robin Carhart-Harris e David Nutt, a um pesquisador menos conhecido, Manoj K. Doss, Frederick S. Barrett e Philip R. Corlett. Batem de frente, com eles, dois centros pioneiros do ramo: o do Imperial College, Reino Unido, e o da Universidade Johns Hopkins (JHU), nos Estados Unidos.

Pesquisador Robin Carhart-Harris, de jaleco branco, segura seringa à frente do rosto com mãos cobertas por luvas roxas; à direita, texto em inglês apresenta documentário "Medicina Mágica"
Cartaz do documentário "Medicina Mágica" destaca o pesquisador Robin Carhart-Harris - Reprodução

Verdade que RC-H já deixou o Imperial pela Universidade da Califórnia em São Francisco, onde criaram uma cátedra para ele, e Corlett é da Universidade Yale. Mas no epicentro do bate-boca estão pesquisadores daqueles dois centros psicodélicos.

O assunto ganha espaço aqui não para fazer fofoca, ou sensacionalismo. A pesquisa com substâncias alteradoras da consciência, como psilocibina, LSD e DMT, já se debate com muitos estigmas do passado para se deixar apanhar em competições de egos --aquela faceta da psique que tais drogas aparentemente dissolvem, ou pelo menos diluem, tornando-se por isso promessas de tratamento para transtornos como depressão e estresse pós-traumático .

Na origem está um artigo do grupo de Carhart-Harris e Nutt no prestigiado periódico Nature Medicine, noticiado em abril neste blog . Eis o título e o subtítulo que tentaram captar a essência de um trabalho complicado: "Como a psilocibina desata o nó da depressão por ao menos 3 semanas / Mapas cerebrais revelam mente mais flexível com substância de cogumelos mágicos".

Página com resumo em inglês de artigo científico com cabeçalho em vermelho da revista Nature Medicine
Fac-símile do resumo de artigo sobre psilocibina e depressão no periódico Nature Medicine - Reprodução

Como primeiro autor do estudo figurava o recém-doutor Richard E. Daws, do Imperial. Na base da pesquisa estavam imagens do cérebro feitas com ressonância magnética funcional, cuja análise, diziam os autores, mostrava uma comunicação maior entre diferentes redes cerebrais, uma flexibilidade que estaria correlacionada com diminuição de sintomas de depressão.

No mesmo dia da publicação na NatMed Doss tuitou a queixa de que Daws et al. haviam deixado de citar seu trabalho sobre o mesmo tema, "com apenas 3 estudos existentes com depressão, fMRI [ressonância magnética funcional] e psilocibina". RC-H pediu de imediato desculpas pelo "lapso" [oversight], e Doss pôs o dedo na própria ferida:

"Estaria mentindo se não dissesse que isso me pareceu um descaso intencional para fingir ineditismo, mas vou acreditar na sua palavra. No entanto, é bem estranho que nenhum dos 9 autores se tenha mantido atualizado sobre a literatura relevante."

Texto de tuíte em inglês do pesquisador Manoj Doss
Reprodução de tuíte do pesquisador Manoj Doss, da Universidade Johns Hopkins - Reprodução

Carhart-Harris respondeu: "Por favor, acredite na minha palavra quanto a isso. Nenhum descaso".

A coisa não parou aí. Em 28 de abril, Doss, Barrett e Corlett divulgaram no diretório aberto PsyArXiv uma crítica detalhada do artigo na NatMed. E Doss tuitou que suas críticas e as de outros haviam sido rejeitadas pela revista , "porque as questões seriam obviamente muito danosas para os editores, os revisores e a reputação do periódico". A bile ainda fervia.

Não vou entrar aqui no mérito das críticas técnicas e estatísticas ao artigo, por falta de competência para apresentar minúcias abstrusas ao leitor de modo correto e compreensível. Algumas parecem relevantes, outras picuinhas, mas é justo chamar aqui a atenção para a refrega porque Doss acusa o artigo de receber atenção exagerada sem que os resultados obtidos sustentassem as conclusões, na sua avaliação.

O leitor especializado que forme sua opinião, mas o tema do hype (repercussão exagerada) no campo psicodélico é pertinente. Como sempre a culpa é empurrada para a imprensa, que por vezes distorce mesmo e infla achados de trabalhos científicos, mas não raro os próprios pesquisadores e suas instituições ajudam nisso.

Considere o caso da objeção de Corlett a uma afirmação de Nutt de que agora havia "prova" de que a terapia com psilocibina funciona no cérebro diferentemente dos antidepressivos inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), como escitalopram. Na tréplica, RC-H e seu mentor no Imperial reconhecem o erro, mas ressalvam que essa afirmação não consta do artigo científico e que ela foi feita "informalmente" em redes sociais.

Desculpa esfarrapada. Primeiro, porque cabe a um pesquisador não induzir jornalistas a erro, mesmo que em redes sociais. Depois, porque não foi só em redes sociais que Nutt deu o passo admitidamente equivocado.

Aqui mesmo no blog reproduzi uma frase dele que dizia a mesma coisa e foi retirada de um comunicado oficial do Imperial College distribuído no serviço EurekAlert para repórteres de ciência :

"Tais achados são importantes porque, pela primeira vez, encontramos que a psilocibina funciona de maneira diferente de antidepressivos convencionais --tornando o cérebro mais flexível e fluido, menos entrincheirado nos padrões de pensamento negativos associados com depressão. Isso corrobora nossas predições iniciais e confirma que a psilocibina poderia ser uma abordagem alternativa real para tratamentos de depressão."

A tréplica de RC-H e Nutt também passa do ponto ao listar suas inegáveis realizações no campo, a quantidade de artigos publicados e as citações amealhadas por eles. Em paralelo, dão a entender que a crítica publicada surgiu só por contrariedade de Doss após não ter sido citado. Parece contraditório exibir as próprias citações como trunfo depois de omitir trabalhos alheios, além de soar como argumento de autoridade.

Carhart-Harris e colegas alegam na tréplica não ter responsabilidade pela repercussão e por eventuais distorções da imprensa ao reportar seus trabalhos, mas Doss e co-autores têm razão ao dizer que a fama angariada influencia tomadores de decisão sobre fundos de pesquisa. O pessoal do Imperial fecha a resposta com uma pergunta que cabe para todos os envolvidos na pendenga:

"Doss et al. terminam sua crítica com uma citação mal direcionada e um alerta sobre ser ‘enganado’. Nós os convidamos a refletir: quem está sendo enganador?"

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