Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

É preciso descomplicar escalas psicológicas para ajudar a todos

Artigo propõe dois questionários para avaliar integração de lições após viagem

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São Paulo

Quem já participou de ensaios clínicos com psicodélicos conhece o perrengue de responder longos questionários sobre seu estado mental. A infinidade de frases cheias de palavras abstratas para tentar capturar sentimentos difíceis de definir aborrece de tal maneira que a pessoa passa a responder de qualquer jeito, para chegar logo ao fim.​

No entanto, as escalas resultantes desses interrogatórios são cruciais para dar alguma objetividade e quantificar os efeitos terapêuticos contra depressão, estresse pós-traumático, ansiedade e outros transtornos para os quais os psicodélicos estão renascendo como opção promissora de tratamento. Não dá para fugir delas. Mas será que dá para melhorá-las?

Antes de prosseguir, cabe explicar que os psicodélicos, diferentemente por exemplo dos antidepressivos disponíveis, e se forem mesmo aprovados para uso psiquiátrico, não serão pílulas de uso contínuo, para tomar todo dia. A ideia sob investigação científica é aplicá-los como facilitadores de psicoterapia.

Logotipo em preto, azul e vermelho da organização americana Veteranos Explorando Soluções de Tratamento
Logotipo e missão da ONG americana Vets - Reprodução

O tratamento mais perto de aprovação nos Estados Unidos é o uso de MDMA (base do ecstasy) como apoio para psicoterapia contra transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Uma condição mental típica de veteranos de guerras americanas, num país belicista como os EUA, que exibia mais de 17 suicídios DIÁRIOS de ex-combatentes em 2019.

Uma parte importante do processo de cura psicodélica é o que se chama de integração. Até aqui os psiquiatras não contavam com uma escala específica para medir, ou tentar medir, "o processo pelo qual a experiência psicodélica se traduz em mudanças positivas na vida cotidiana" do paciente.

Essa definição se encontra entre aspas porque foi tirada do artigo "As Escalas de Integração Psicodélica: Ferramentas para Medir Comportamentos e Experiências de Integração Psicodélica", publicado há um mês no periódico especializado Frontiers in Psychology - Quantitative Psychology and Measurement.

Dois dos autores, Tomas Frymann e Sophie Whitney, integram a ONG Vets (Veteranos Explorando Soluções de Tratamento, na sigla em inglês). Ela foi fundada em 2019 por Marcus Capone, um ex-fuzileiro naval, e sua mulher, Amber Capone, com a missão de reverter a epidemia de suicídios entre ex-combatentes e promover o acesso de veteranos a terapias assistidas por psicodélicos.

Os outros dois autores são David B. Yaden, do Centro para Pesquisa Psicodélica e da Consciência na Universidade Johns Hopkins, e Joshua Lipson, do Departamento de Aconselhamento e Psicologia Clínica na Universidade Columbia. Frymann também atua em Columbia, e Whitney, na Universidade de Pós-Graduação Pacifica.

Tal conceito de integração psicológica abrange quatro eixos: 1. É um processo, ou seja, ocorre ao longo do tempo; 2. Se orienta para a conexão, a tradução da consciência não ordinária em mudanças na vida comum; 3. Precisa ter benefício, com ênfase portanto em mudanças positivas como desfecho natural; 4. Envolve incorporação, quer dizer, mudanças alcançadas nos comportamentos do dia a dia.

O artigo chama a atenção para o fato de que pelo menos 10% da população norte-americana havia usado ou usava psicodélicos em 2013. Esse número certamente cresceu desde então, com as notícias cada vez mais comuns sobre bons resultados obtidos em testes clínicos. Como são substâncias ilegais, a maioria dessas práticas ocorre sem apoio de terapeutas, portanto sem chance de integração com ajuda de profissionais treinados.

Além disso, em caso de aprovação de psicodélicos para psicoterapia, é quase certo que por um tempo faltarão pessoas qualificadas para oferecer o serviço especializado. Propiciar um instrumento sucinto, de fácil aplicação e avaliação, fez parte da motivação dos autores do artigo em Frontiers.

"É imperativo que a comunidade científica compreenda melhor o processamento posterior dessas experiências poderosas, de modo que facilitadores e usuários possam ambos maximizar os benefícios sustentáveis de experiências psicodélicas e minimizar o dano irresponsável causados ao induzir tais experiências sem uma moldura de apoio suficiente", escreveram.

"O conceito de integração ainda é relativamente vago e carece de uma fundamentação maior. As características de um processo de integração não são muito bem definidas e frequentemente são baseadas em critérios subjetivos", comenta Lucas Maia, que participa da equipe de integração de estudo com DMT para depressão no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe/UFRN).

"O desenvolvimento de instrumentos padronizados que permitam uma caracterização objetiva do processo de integração pode ser útil para investigar e entender melhor os efeitos terapêuticos dos psicodélicos. As escalas recém-criadas buscam preencher essa lacuna", diz o pesquisador, que tem trabalhado com o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, da Unicamp, e a enfermeira Ana Cláudia Garcia, da Univeersidade Federal de Alfenas (Unifal), na tradução e validação de outras escalas psicométricas. O trio já cogita fazer o mesmo com as duas escalas apresentadas no artigo.

Texto em inglês comitens de duas escalas para avaliar integração após experiência psicodélica traduzidos para o português no final da reportagem
Tabela com itens de duas escalas para avaliar integração após experiência psicodélica - Reprodução/Frontiers in Psychology

Uma delas, a EIS, serviria para aquilatar o grau de envolvimento do paciente no processo de integração. A outra, IES, para avaliar o nível de benefício incorporado por ela à vida cotidiana do psiconauta. Para cada frase a pessoa indica sua concordância numa régua de sete graduações, de "discordo totalmente" (nota 1) a "concordo totalmente" (7), passando por "nem concordo nem discordo" (neutro, 4).

A sugestão inicial é aplicar as escalas 48h após a viagem psicodélica e, depois, a cada 7 dias, por 8 a 12 semanas. A luz vermelha sobre o processo de integração se acenderia quando surgisse uma preponderância de respostas "discordo levemente" (grau 3) para baixo.

Os proponentes das escalas assinalam que os resultados aferidos podem variar muito com fatores como dosimetria e escolaridade. Uma dose alta, por exemplo, pode resultar em perturbação e desequilíbrio temporários, enquanto as vivências profundas continuam a reverberar no cotidiano. Os primeiros escores baixos em itens como tranquilidade e harmonia, assim, não deveriam ser tomados como indicadores de fracasso na integração.

Não deixa de ser animador encontrar no artigo que "aspectos importantes identificados na integração [...], engajamento com a natureza, comunidades de apoio, guias psicodélicos experimentados, contemplação pessoal e práticas físicas e espirituais [...], estiveram presentes nos modos de vida e cerimônias vistas em povos indígenas espalhados pelo mundo, que usaram psicodélicos como sacramentos por centenas e milhares de anos".

Essa abertura para conhecimento tradicional acumulado, práticas consagradas pelo uso e populações diversas de brancos ocidentais de alta escolaridade --justamente de onde saíram os voluntários e pesquisadores que participaram da validação de EIS e IES-- precisa ser levada às últimas consequências.

A maneira como as frases são formuladas, com uma profusão de conceitos abstratos, servirá para medir pouca coisa de útil quanto ao bem-estar de populações de baixa renda no Brasil, por exemplo, como os pacientes do SUS.

Veja, a seguir, uma tradução apressada do inglês para as escalas propostas e, logo após cada item, em itálico, uma proposta ainda mais precipitada de "metatradução" das frases para um português simplificado:

ESCALA DE ENVOLVIMENTO COM A INTEGRAÇÃO (EIS)

Eu me proporcionei espaço mental para me reconectar com a experiência [psicodélica]

Eu pus minha cabeça para pensar e reviver como foi passar por isso [experiência psicodélica]

Eu li, assisti ou escutei conteúdo informativo relevante para minha experiência

Eu procurei coisas escritas, vi na TV ou ouvi coisas importantes para dar conta do que vivi naqueles momentos

Eu ganhei compreensão de minha experiência por meio de conversas com pessoas compreensivas

Eu consegui compreender melhor o que aconteceu depois de conversar com pessoas amigas

Eu dediquei tempo para contemplação silenciosa de minha experiência

Eu passei algum tempo em silêncio pensando no que vivi naqueles momentos

Eu dediquei tempo na natureza para enriquecer minha experiência

Eu passei algum tempo em lugares bonitos da natureza para manter vivos em mim aqueles sentimentos

Eu fiz acompanhar minha experiência posteriormente de práticas de atenção concentrada (meditação, mindfulness/atenção plena, mantras, diário, visualização etc.)

Eu passei algum tempo depois da experiência meditando, orando, cantando, escrevendo, visualizando ou pensando com atenção naquilo que vivi

Eu apliquei ensinamentos de minha experiência em minha vida

Eu usei lições tiradas daqueles momentos para melhorar minha vida no dia a dia

Eu encontrei meios de transportar as intenções em minha experiência até a minha vida cotidiana

Eu fui capaz de aplicar no dia a dia as intenções boas com que cheguei naquela experiência

Por causa de minha experiência, dei prioridade para meu bem-estar geral

Depois de passar por aquilo tudo, passei a dar mais importância para o meu próprio bem-estar, em geral

Eu dediquei tempo em ambientes que me ajudam a ficar sintonizado com as lições que se seguiram a minha experiência

Eu procurei passar mais tempo em lugares que me ajudam a ficar ligado naquelas lições que tirei da experiência

Eu me tornei mais compreensivo com os outros como resultado de minha experiência

Eu me tornei uma pessoa mais bacana e aberta com os outros depois de experimentar tudo aquilo

Eu fiz escolhas de vida saudáveis para mim mesmo por causa de minha experiência

Eu escolhi buscar e fazer coisas mais saudáveis depois daquela experiência

ESCALA DE INTEGRAÇÃO EXPERIMENTADA (IES)

Eu me sinto em paz com minha experiência [psicodélica]

Eu me sinto em paz com tudo o que vivi naqueles momentos

Eu me sinto mais equilibrado desde a minha experiência

Eu me sinto mais equilibrado depois de passar por tudo aquilo

Eu tenho um sentido continuado de curiosidade, de mente aberta, sobre minha experiência

Eu me sinto sempre curioso e de cabeça aberta para entender aquela experiência

Eu sinto harmonia entre a minha experiência e meu ser interior

Eu sinto uma harmonia entre o que vivi naquela hora e o que acontece aqui dentro de mim

Eu sinto harmonia entre minha vida cotidiana e minha experiência

Eu sinto uma harmonia entre a vida do dia a dia e aqueles momentos que experimentei

Eu sinto uma conexão duradoura com minha experiência

Eu me sinto o tempo todo ligado com aqueles momentos

Eu sinto mais conexão em minha vida por causa da experiência

Eu me sinto mais ligado na vida de cada dia depois de passar por aquilo

Eu tenho um sentimento profundo de conexão entre a natureza e a minha experiência

Eu sinto uma ligação bem profunda entre a natureza e o que vivi naqueles momentos

Eu me sinto mais autoconsciente após minha experiência

Eu sinto que presto mais atenção no que se passa em minha cabeça depois daquela experiência

Eu sinto o benefício de minha experiência traduzido em minha vida

Eu sinto que coisas boas obtidas daqueles momentos ainda se encontram presentes em minha vida

Eu sinto o efeito positivo do modo como interpreto minha experiência

Eu sinto que coisas boas vieram de parar para pensar sobre aquela experiência

Eu sinto o benefício de minha experiência se estender além de mim mesmo para minha comunidade

Eu sinto que as coisas boas daquela experiência não serviram só para mim, mas também para as pessoas de minha comunidade

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