Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Como a ayahuasca se compara com rapé e cetamina

Experiência com as três substâncias em poucos dias dá resultados bem diferentes

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São Paulo
Altar com vela acesa e várias figuras religiosas
Altar em salão do Instituto Nhanderu, que faz redução de danos na região da cracolândia paulistana - Marcelo Leite

Um velho de terno, conhecido benzedeiro, está pronto para legar seu saber à filha. Estende a mão direita para o rosto da moça e passa os dedos de cima para baixo, dos cabelos à testa e ao queixo, num gesto de bênção que ao mesmo tempo a empurra para trás.

É a despedida de alguém que está pronto para partir em paz. Assim que a mão deixa o rosto da mulher, o corpo do homem começa a se desfazer em areia. Sopra um vento forte, que espalha os grãos para todo lado.

A cena, meio vista e meio sonhada, foi a mensagem central de seis horas de trabalho com ayahuasca no Instituto Nhanderu. Esta ação social religiosa na região da cracolândia, fundada por Adriano de Camargo e Tuca Fontes, usa as chamadas medicinas da floresta em rituais que acolhem dependentes químicos.

A ayahuasca daquela noite de sábado era forte, nem foi necessário aceitar uma segunda consagração (dose) para iniciar a viagem que teve lá suas trepidações, mas sempre em paz. Mais precisamente, uma das ayahuascas trazidas do Acre por Adriano de aldeias Noke Kuin (Katukina), para onde viaja com frequência.

O neoxamã paulistano deu ao blogueiro uma bebida alegadamente mais fraca, servida numa canequinha de ágata. O chá era escuro e pareceu avermelhado, de sabor intenso, vegetal. Foram necessários três goles para esgotar o líquido entre amargo e azedo.

Cerca de uma hora antes havia consagrado rapé apurinã, um dos vários tipos disponíveis no Nhanderu. Soprado na narina direita com um tipi (artefato de madeira oca), deflagrou sensação intensa no crânio, como que um preenchimento expansivo, e no peito, em vibração que o psiconauta costuma chamar de frêmito.

A pancada desferida pelo rapé na mente e no corpo, de início, tem algo de desagradável, pela intensidade física e pela surpresa que vem com ela. Entende-se bem por que vegetais psicoativos recebem o nome de plantas de poder. Tanto poder que o iniciante declina receber o pó na narina esquerda.

O choque inicial se dissipa aos poucos e dá lugar a leveza e bem-estar, ligeira euforia, clareza de pensamento. Não chega a ser uma alteração da consciência, e neste sentido se diferencia muito dos psicodélicos propriamente ditos.

Mesmo aguçando a mente, o rapé o faz de maneira por assim dizer passiva, abrindo-a para o que vem do corpo e de fora. Não houve afloramento de conteúdos emocionais, eventos biográficos ou cenas oníricas como a descrita acima. Pode-se descrever a vivência, ao menos aquela iniciação de sábado, como mais corporal, fisiológica e perceptual do que psíquica.

Salão com altar e colchonetes para cerimônias com ayahuasca no Instituto Nhanderu
Salão com altar e colchonetes para cerimônias com ayahuasca no Instituto Nhanderu - Marcelo Leite

Neste sentido, tem mais a ver com o efeito da cetamina (ketamina), que havia experimentado dias antes. Foi também por via nasal, aspirada num canudo de metal depois de aferida a dose de 50 mg numa balança de precisão. O impacto é rápido, decerto bem mais que o da DMT (dimetiltriptamina) na ayahuasca ingerida, mas não explosivo como o do rapé.

Ocorre, porém, uma acentuada dissociação entre pensamento e corpo. Olhando para as mãos e braços, dá para saber a quem pertencem, mas a sensação é também de que poderiam não ser seus. Quase uma indiferença.

A cetamina é, afinal, um poderoso anestésico. Um dos presentes a descreveu com uma gigantesca anestesia de dentista. O companheiro ressalvou, porém, que ao menos não ocorria descontrole motor, na dose cheirada, embora a prostração fosse completa.

Tinha "emburacado", como disse outro, referindo-se à expressão "K-hole" (buraco da ketamina) empregada por usuários recreativos da droga. Ela costuma ser usada na cena noturna dos clubes para dançar, tirando partido de curiosa distorção perceptiva.

Escutando música, tem-se a impressão de ouvir cada acorde, instrumento ou voz separadamente, ainda que sem perder a noção de que são simultâneos. Uma quebra de sincronia, mas não total. Dá para imaginar que movimentos corporais funcionem, com prazer, como uma reconstrução do fluxo musical. Mas essa reflexão não tem o poder de tirar o prostrado do sofá.

Estante com frascos pequenos de vidro contendo vários tipos de rapé no Instituto Nhanderu
Estante com frascos pequenos de vidro contendo vários tipos de rapé no Instituto Nhanderu - Marcelo Leite

De volta ao Nhanderu e à experiência mais rica da ayahuasca: bem antes da meia hora prevista, a força do chá chegou trazendo, a princípio, uma aguçada acuidade auditiva. Deitado no colchonete e abrigado no cobertor, ouvia a música alta distinguindo com clareza cada som, mas sem fragmentação.

Em seguida jorraram lembranças de um período específico da adolescência, férias em Ubatuba com a primeira namorada. Passeios na lancha pequena de alumínio, a liberdade hoje impensável de três jovens de 14 ou 15 anos irem e virem entre praias e ilhas. Só coisa boa.

Começou então a sessão visual psicodélica. Muita luz e cor, sucessão de figuras geométricas, fractais, transparências prismáticas, decomposições espectrais projetadas sobre a tela dos olhos cerrados. Tudo bonito, mas com a superficialidade perceptual que não mereceria o nome de mirações.

De flautas e murmúrio de águas correntes, as músicas vão migrando para composições indígenas, cantos de pajés e xamãs com percussão forte, que assume sobretons perturbadores. A viagem se torna exercício de resiliência, como quem sacoleja em estrada esburacada e tem de manter a cabeça firme no pescoço.

Um pouco de enjoo se insinua, é preciso sentar e pegar o baldinho posto de lado para o vômito eventual, que não chega. A vontade de urinar é grande, e a caminhada de 20 passos até o banheiro se revela penosa, só acontece com o amparo de dois homens. A pressão cai, o suor frio aflora e empapa a camiseta.

Uma dose de sal sob a língua devolve o peso habitual à cabeça, após alguns minutos. O suficiente para voltar ao aconchego de colchonete, manta e travesseiro. Vigília e sonhos lúcidos iam e vinham em ondas, embalando o psiconauta revigorado.

Em volta, vários participantes vomitavam e escarravam nos baldes, após novas doses de chá e rapé. Outros cachimbavam, e pelo menos um pingou sananga nos olhos. Tanta atividade não chegava a incomodar, mas reforçou a impressão de que algumas pessoas recorrem de maneira quase suplicante às medicinas da floresta.

O restante da força da ayahuasca arrefece devagarinho, ao ritmo das canções guaranis entoadas pelo jovem Tukumbo ao violão. Repetem-se versos que soam como mantras: "Nhanderu tenonde, Nhanderu tenonde" (o criador maior). Depois vieram canções jubilosas e dançantes, como "Losing My Relion" (R.E.M.) e "O que É, O que É?" (Gonzaguinha): "É a vida / É bonita / E é bonita".

Ali pelas 5h da manhã Adriano pede que todos se aprumassem, mas nem todos se sentaram de pronto. Seguiu-se a rodada de partilhas, com o maracá e a palavra passando de um em um. Quase todos falaram, muitos agradecimentos e algumas histórias de vida, dores e superação de dependência de drogas como álcool e crack.

Apresentei-me falando que, antes de jornalista, era filho, irmão, marido, pai e avô, e mais não consegui dizer (foi quanto bastou para ganhar a alcunha de "diretor de família", com muitas risadas). Era o resumo extraído da visão do curandeiro de terno que se despede da filha: tornar-se pó pode não parecer angustiante, quando se tem certeza de deixar coisas boas no mundo com sua descendência.

Serviu-se uma sopa vegana, acompanhada de petiscos nem tanto trazidos pelos visitantes. A recomendação, para quem ia embora, era pedir o Uber e esperar chegar o carro antes de descer ao térreo do predinho comercial. Apesar do dia claro, ainda era a cracolândia em volta.

Naquelas calçadas morara durante anos F., até sete meses atrás. Agora tem emprego e está feliz pela primeira vez na vida, aos 42 anos. Atribui a nova fase ao Nhanderu e às medicinas da floresta.

O repórter conclui, por experiência própria, que a ayahuasca e o acolhimento terão contribuído mais para seu resgate que o rapé. Do ângulo psíquico, visões, símbolos, cenas e lembranças parecem oferecer mais matéria-prima para integração que alterações físicas e da percepção, por brutas e explosivas que sejam. Mas quem sou eu para dizer?

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Não deixe de ver também as reportagens da série A Ressurreição da Jurema:

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

Sempre cabe lembrar que psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.​

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