Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Renascimento psicodélico enfrenta risco de novo revertério

Pesquisadores recomendam comunicação mais sóbria de resultados em testes clínicos

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São Paulo
Desenhos de cogumelos em cores psicodélicas sobre fundo preto e traços brancos delineando um rosto humano no canto inferior esquerdo
Ilustração de Raphael Egel - Arquivo pessoal

Pesquisadores de psicodélicos temem reviver o trauma de uma reviravolta negativa como a dos anos 1970, com a declaração da Guerra às Drogas pelo presidente americano Richard Nixon. A proibição de LSD e outros alteradores de consciência se espalhou pelo mundo e pôs freio a duas décadas de estudos com essas drogas.

Na virada do século 21, o campo da ciência psicodélica começou a se reerguer. Em lugar do estigmatizado ácido lisérgico, ganharam destaque compostos como psilocibina de cogumelos "mágicos" e MDMA do ecstasy, testados com relativo sucesso contra depressão e estresse pós-traumático, respectivamente.

Gatos escaldados, alguns pesquisadores lançaram um ataque preventivo, por assim dizer, para desinflar a bolha de entusiasmo antes que ela estoure espalhando estilhaços para todos os lados. Duas figuras de proa vieram a público vocalizar seus temores e pregar comedimento: Rosalind Watts e Roland Griffiths.

A psicóloga clínica Watts participou como guia de experiências psicodélicas ("trip-sitter") com psilocibina de pacientes num ensaio célebre do Imperial College de Londres, publicado em 2016 na revista médica Lancet. No estudo seguinte do mesmo grupo, que comparou psilocibina com um antidepressivo (escitalopram) e também teve muita repercussão, atuou como líder da parte clínica.

Esse trabalho, assim como outro outro artigo do time do Imperial liderado por Robin Carhart-Harris, recebeu críticas recentes em editorial assinado por especialistas da Austrália e dos EUA, como noticiado neste blog. Watts não abriu fogo, contudo, contra os dois textos, concentrando-se em questionar seu próprio papel na divulgação desses resultados.

O mea-culpa surgiu num texto incomumente franco postado no site Medium em fevereiro, com o título "Podem os cogumelos mágicos destravar a depressão? O que aprendi em cinco anos desde minha fala no TEDx". A apresentação de 15 minutos, feita em Oxford, conta com 23 mil visualizações no YouTube.

Watts se penitencia por ter posto então mais ênfase na substância psicodélica dos cogumelos, a psilocibina, do que no processe psicoterapêutico que cerca sua administração a pacientes deprimidos nos testes clínicos de que participou. "Assistindo de novo, hoje, não posso deixar de sentir-me como se tivesse contribuído, sem saber, para uma narrativa simplista e potencialmente perigosa em torno dos psicodélicos; uma narrativa que estou tentando corrigir."

Ela conta que vários desses voluntários enfrentaram experiências dolorosas, que muito exigiram dela e de outros guias. A droga funcionava só como um catalisador do processo psicoterapêutico de integração, abrindo comportas para uma torrente de conteúdos e emoções soterrados que demandavam interpretação e assimilação.

"Mal sabia eu que meu otimismo se revelaria parte do problema, mais que da solução. O revertério do revertério em torno dos psicodélicos está em curso e pode ser tão danoso para o florescimento saudável de um futuro que inclua cura psicodélica quanto foi o primeiro revertério, que ocorreu nos anos 1960 e 70."

Watts atribui o retrocesso a um vagalhão de hype, promessas exageradas, pensamento mágico, marketing, douração de pílulas, frases de efeito simplistas, investidores ansiosos, corrida do ouro e apossamento de territórios. "Essa onda foi acompanhada do alijamento de vozes críticas, como as de vítimas de assédio sexual em contextos psicodélicos rejeitadas por inúmeros profissionais respeitados no campo, de modo a não emanar seu brilho."

Ciclo de Hype de Gartner mostra pico de interesse seguido de decepção, sobriedade e produtividade
Ciclo de Hype de Gartner mostra pico de interesse seguido de decepção, sobriedade e produtividade - Reprodução

Hype é também o tema de Griffiths, um pioneiro do renascimento psicodélico em pesquisas com psilocibina, e de dois colegas na Universidade Johns Hopkins, David Yaden e James Potash. Eles publicaram há dois meses num periódico da associação médica dos EUA, JAMA Psychiatry, artigo de opinião com o título "Preparando o estouro da bolha de hype psicodélico".

Griffiths e cia. atribuem o hype, em primeiro lugar, a interesses da imprensa e de investidores, que estariam inflando resultados preliminares, ainda que promissores. Mas admitem também que pesquisadores e médicos envolvidos nos testes clínicos não se comunicam com o cuidado necessário.

"Em anos recentes, um número perturbadoramente alto de artigos promoveu psicodélicos como cura ou droga milagrosa, assim como se mencionava potencial de investimento em psicodélicos alcançando bilhões de dólares. Essas mudanças extremas de percepção podem criar impedimentos para a ciência rigorosa e as aplicações clínicas razoáveis", alerta o comentário, aludindo ao abandono acelerado dos preconceitos anteriores.

"No entanto, no que respeita a psicodélicos, os dados científicos parecem demonstrar que estão errados tanto os super-entusiasmados quanto os supercéticos."

Os equívocos dos entusiastas seriam minimizar os riscos do uso de psicodélicos e dar como bons resultados apenas medianos, como o empate entre psilocibina e escitalopram no estudo do Imperial College. A questão dos riscos, aliás, foi enfatizada em setembro, na conferência Horizons Northwest, em Portland (Oregon), por ninguém menos que Carhart-Harris, assim como por Brian Anderson, da Universidade da Califórnia em São Francisco.

Os autores do texto no JAMA Psychiatry recorrem a um diagrama genérico sobre inovações tecnológicas, o Ciclo de Hype de Gartner reproduzido acima, para caracterizar a fase atual da bolha: passamos pelo pico de interesse e rumamos para a vala de decepção.

Relatos jornalísticos ultrapositivos se tornam ultranegativos, como nos casos de assédio sexual. Com o tempo, porém, avaliações mais calibradas de evidências –como a constatação de que abusos são raros e os benefícios, comuns– podem conduzir a um patamar mais produtivo.

"Se as percepções da ciência psicodélica mudam de acordo com esse processo, então nos aproximamos depressa de um momento perigoso para o campo de pesquisa. O potencial para revide é real; vimos essa reviravolta dos psicodélicos nos anos 1960."

Yaden, Potash e Griffiths defendem que é obrigação dos cientistas contestar as ideias de que psicodélicos sejam panaceia para qualquer transtorno psiquiátrico ou calamidade social, como racismo e guerras.

"Encorajamos nossos colegas a ajudar a desinflar a bolha do hype psicodélico de maneira comedida, para que possamos seguir com o trabalho duro de determinar com maior precisão os riscos e benefícios dos psicodélicos", concluem.

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Não deixe de ver também as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

Cabe lembrar que psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

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