Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

DEA se orienta por visão míope da ayahuasca

Agência antidrogas supervaloriza riscos e subestima potencial terapêutico

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Detalhe de galho com folhas e flores verdes
Folhas da chacrona (Psychotria viridis), um dos ingredientes com que se prepara a ayahuasca - Arquivo pessoal

Dar a um texto a aparência de conhecimento seguro, fundamentado em estudos científicos, constitui poderoso artifício retórico, até mesmo quando um órgão de governo produz documento interno para justificar uma política pública retrógrada. Não seria diferente com a agência antidrogas dos Estados Unidos, como se vê no relatório da DEA sobre ayahuasca tornado público pelo Instituto Chacruna, de São Francisco, na sexta-feira (3).

O documento de 33 páginas, obtido pela ONG com base na lei americana de acesso à informação (FOIA, Freedom of Information Act), foi intitulado "Ayahuasca: Riscos para Saúde Pública e Segurança". Data de julho de 2020, mas sua existência só se tornou conhecida numa comunicação de abril de 2021 ao Chacruna e à Church of the Eagle and the Condor (CEC), ou Igreja da Águia e do Condor, co-autora do pedido de acesso à informação.

Nos EUA, religiões como a União do Vegetal (UDV) viram reconhecido pela Suprema Corte, em 2006, o direito de consagrar ayahuasca, com fundamento no preceito constitucional da liberdade religiosa. A CEC, entretanto, enfrenta barreiras para fazer uso do sacramento, e os vieses do relatório da DEA sobre saúde e segurança da bebida contribuem para manter a discriminação.

Assim que tomaram conhecimento da existência do relatório, Chacruna e CEC o incluíram no pedido via FOIA. Tiveram de esperar quase dois anos para obter acesso ao documento. E isso num país que se vangloria como farol da democracia e do estado de direito ("rule of law").

"A linguagem da avaliação [da DEA] não leva em conta os benefícios da ayahuasca e provavelmente superestima os riscos do uso da ayahuasca, particularmente em contexto controlado, religioso ou espiritual, com procedimentos adequados de triagem e consentimento informado", afirma a página do Chacruna em que fac-símile do relatório é apresentado.

Fac-símile de página de relatório da DEA
Trecho inicial de relatório da agência americana Drug Enforcement Administration sobre ayahuasca - Reprodução

O tom do texto da DEA é alarmista, como se lê na sua p. 10: "... apesar de alegações de que ayahuasca é segura, o uso de ayahuasca tem sido associado com cardiotoxicidade moderada, neurotoxicidade, psicopatologia, desorientação transitória, ansiedade, coma e morte".

Muitos dos riscos apontados se baseiam em estudos com a dimetiltriptamina (DMT), que é apenas um dos compostos psicoativos presentes na ayahuasca. Embora seja geralmente identificada como desencadeadora das visões ("mirações") propiciadas pelo chá, a DMT age em conjunto com uma complexa mistura de substâncias das plantas –chacrona e cipó-mariri– usadas no preparo.

Cipó-mariri (Banisteriopsis caapi), uma das plantas usadas para fazer ayahuasca - Eduardo Knapp/Folhapress

Na mesma p. 10 se diz que a Associação Americana de Centros de Controles de Envenenamento (AAPCC) registra 538 casos de atendimentos relacionados com ayahuasca em uma década (2005-2015). Desses, houve 150 casos de internação em UTI ou semi-UTI, com 28 pessoas intubadas, 7 paradas respiratórias e 4 cardíacas. Em dez anos, é bom repetir.

Na p. 11, informa-se que dados pedidos pela DEA à AAPCC para o período 2012-2017 indicavam 341 atendimentos sobre ayahuasca e 122 de DMT. No que toca à ayahuasca, os episódios envolveram cardiotoxicidade (taquicardia e hipertensão); 6 paradas respiratórias e 3 cardíacas; 33 intubações ou ventilações. A própria DEA assinala que 43% dos atendimentos envolviam uso associado de uma ou mais substâncias, portanto não haveria como atribuir os efeitos adversos graves diretamente à ayahuasca.

Na p. 13, o relatório dá destaque para o caso clínico de um homem de 36 anos com histórico de psicose relacionada com abuso de maconha. Na p. 14, passa para relatos jornalísticos: 9 casos de morte em rituais ou depois deles. Mas, novamente, a DEA reconhece que os elementos disponíveis não permitem afirmar que os óbitos tenham acontecido em consequência da ayahuasca.

Essas ressalvas dão ao documento oficial uma aparência de isenção científica. Na p. 15, contudo, o viés negativo contra ayahuasca se explicita: apesar de citar estudos dizendo que seria preciso multiplicar 15 a 50 vezes a quantidade ingerida em rituais para chegar à dose letal, a DEA recorre à alegação de que o modo de preparo varia muito para sustentar que persistiria um risco considerável:

"Assim, o uso de ayahuasca em cerimônia religiosa ou para propósitos recreativos pode resultar em quantidades de DMT que se aproximam da dose LD50 e, consequentemente, podem levar a intoxicações por DMT e/ou efeitos psicoativos extremos". (LD50 é uma medida padronizada para a quantidade de qualquer composto químico capaz de provocar a morte de 50% dos roedores empregados no teste toxicológico.)

Nas pp. 17-18, depois de citar literatura farmacológica mostrando que DMT não gera tolerância, o que exigiria doses subsequentes sempre crescentes, a DEA recorre de novo a uma possiblidade teórica para asseverar que há, sim, probabilidade de causar dependência química: há evidência de mudanças estruturais no cérebro com uso de ayahuasca a longo prazo, e essas mudanças poderiam se dar no sentido da adicção.

A estratégia de superestimação dos riscos prossegue nas pp. 19-20. A DEA cita apenas quatros casos clínicos de surtos psicóticos após uso de ayahuasca, mas conclui (p. 19): "Embora a ocorrência de psicose por ayahuasca seja baixa, as consequências ou desfechos de saúde da psicose podem ser graves".

Na p. 20, ao tratar de mortalidade relatada na literatura médica, o relatório começa mencionando um único óbito, de jovem que tinha tomado alta dose de 5-MeO-DMT numa bebida que pensava ser ayahuasca, embora aquela quantidade não pudesse provir de fontes naturais, apenas de um composto sintético... A 5-MeO-DMT é um composto aparentado com a dimetiltriptamina encontrado naturalmente no veneno de alguns sapos.

Quando passa a falar de potenciais benefícios para a saúde, a DEA inverte o padrão: os estudos existentes seriam muito limitados, com conclusões frágeis confundidas por vários fatores. Ou seja, eventuais efeitos benéficos poderiam, em tese, ser atribuídos a outras condições da experiência psicodélica sob efeito da ayahuasca, como o sentimento de acolhida numa cerimônia religiosa com cânticos.

Há, contudo, uma omissão grave da literatura biomédica na bibliografia usada pelos especialistas da DEA: embora o documento seja de julho de 2020, ele não incluiu o primeiro teste clínico de um psicodélico (ayahuasca, no caso) para tratar depressão controlado por grupo de placebo, com 29 voluntários, realizado pelo grupo de Dráulio de Araújo na Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN (Palhano-Fontes et al., 2019).

Com tantos vieses, não surpreende que a DEA conclua desfavor do chá cerimonial: "Embora se alegue que a ayahuasca tenha efeitos psicológicos benéficos, não há estudos bem controlados suficientes para apoiar essa afirmação. São necessários mais estudos clínicos bem controlados para avaliar todo seu potencial terapêutico e para aumentar e diversificar a população estudada", diz o texto.

"Mais estudos também são necessários para relacionar os achados positivos ou negativos especificamente com a ayahuasca, e não com o contexto em que a ayahuasca foi usada, e para avaliar os efeitos de longo prazo ou persistentes da ayahuasca e seus componentes sobre a saúde mental. Até que esses estudos sejam completados e os resultados, analisados, não se pode afirmar que ayahuasca seja segura."

Tampouco é estranhável que a DEA tenha demorado a dar acesso ao relatório, que parece mesmo talhado para realimentar a doutrina proibicionista da corporação policial, mesmo em face de crescentes evidências científicas em favor da ayahuasca. E não só científicas, mas também as provenientes do uso ritual seguro por povos indígenas da Amazônia há séculos, se não milênios, e há quase um século por religiões ayahuasqueiras urbanas no Brasil, como Santo Daime, Barquinha e UDV.

Quem quiser se informar sobre ayahuasca de maneira mais equilibrada encontrará farto material na literatura acadêmica. Um dos artigos mais recentes saiu no periódico European Neuropsychopharmacology. Assinado por um quinteto de autores atuantes no Brasil, Lucas Maia, Dimitri Daldegan-Bueno, Isabel Wießner, Dráulio de Araújo e Luís Fernando Tófoli, seu título é "Potencial Terapêutico da Ayahuasca: O que Sabemos e o que não Sabemos".

O levantamento sistemático da literatura indica, segundo esse grupo de pesquisadores de psicodélicos para depressão (ayahuasca e DMT inalado), que as evidências de efeito terapêutico da ayahuasca são mais fortes no caso de depressão e abuso de substâncias (dependência química).

Marcelo Leite participa de fase-piloto de um teste clínico para investigar o efeito antidepressivo da DMT
Vluntário blogueiro participa de fase-piloto de um teste clínico para investigar o efeito antidepressivo da DMT - Fernanda Palhano-Fontes/Acervo pessoal

Outra ampla revisão sobre o chá, também chamado de daime, foi publicada pouco mais de um ano atrás por Edward James, Joachim Keppler, Thomas Robertshaw e Ben Sessa. Está na revista Human Psychopharmacology, com o título "N,N-dimetiltriptamina e a Medicina Vegetal Ayahuasca da Amazônia".

Sessa é autor de um bom livro introdutório ao tema, "The Psychedelic Renaissance – Reassessing the Role of Psychedelic Drugs in 21st Century Psychiatry and Society" (o renascimento psicodélico – reavaliando o papel das drogas psicodélicas na psiquiatria e na sociedade do século 21). Saiu em 2012 pela Muswell Hill Press.

Seu recente artigo com James, Keppler e Robertshaw oferece bom exemplo de como um viés positivo, ou pelo menos desvinculado do paradigma proibicionista, pode resultar numa apreciação muito mais generosa do potencial da ayahuasca, assim como de tudo que ainda se desconhece sobre ela e seus efeitos.

Citando em grande medida a mesma literatura levantada pela DEA, eles concluem de maneira bem mais benigna: "Uma mudança de enquadramento [retirando a substância] do Schedule 1, reconhecendo aplicações médicas potenciais da DMT, é justificável nessa altura, e tal mudança de enquadramento facilitaria estudos médicos adicionais". Schedule 1 é a lista de substâncias proibidas nos EUA.

Em nenhum momento Sessa e seus coautores minimizam os riscos envolvidos na ingestão de ayahuasca, mas tampouco perdem de vista, como faz a DEA, que seu uso é demonstravelmente seguro em contexto ritual comunitário. Só a UDV, por exemplo, tem 22 mil adeptos tomando o chá regularmente, a cada quinzena, com raríssimos efeitos adversos graves.

Depois de mencionar alguns dos mesmos casos e relatos supervalorizados pela DEA, a revisão afirma: "Esses exemplos demonstram a necessidade de triagem e preparação suficiente antes de sessões de ayahuasca, pois algumas pessoas com condições de saúde subjacentes, incluindo histórico pessoal ou familiar de psicose, enfrentam risco maior".

"No entanto, o uso regular em indivíduos saudáveis não tem sido associado com deterioração da saúde mental ou da função cognitiva, e a incidência relatada de psicose em usuários de ayahuasca indica que ela ocorre em menos de 0,1% dos consumidores."

O artigo ressalta que a ayahuasca é geralmente usada em grupo e que o ambiente comunitário de apoio provavelmente exerce papel importante na eficácia da ayahuasca como medicamento. E defende que isso deveria servir de inspiração para a biomedicina, caso a bebida venha a ser incluída entre as terapias autorizadas.

"Se a ayahuasca for integrada plenamente em sistemas médicos internacionais, os facilitadores que se encontrarem fora da Amazônia devem ser médicos, psiquiatras e psicólogos treinados, que poderiam se especializar e receber treinamento complementar na Amazônia", recomendam os autores.

Eles citam como possíveis mentores dos profissionais de saúde europeus e norte-americanos ninguém menos que mestres Shipibo-Conibo, Tukano, Kamsa e Huitoto, alguns dos muitos povos da Amazônia que usam tradicionalmente a bebida "e têm sido designados os equivalentes amazônicos de instituições como Oxford, Cambridge e Harvard".

Parece bem improvável que a DEA venha a incluir essa revisão em seu próximo relatório interno sobre riscos da ayahuasca para saúde pública e segurança. O reconhecimento e a homenagem devidos ao conhecimento tradicional não cabem no escopo estreito da instrumentalização da ciência como armamento em sua fracassada Guerra às Drogas.

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Não deixe de ver também na Folha as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

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