Voltaire de Souza

Crônicas da vida louca

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Uma jiboia em liberdade

Quando uma cobra assusta bairro nobre, convicções políticas entram em parafuso

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Medo. Ameaça. Descontrole.

Os humanos e os pets que se cuidem.

Uma jiboia circula solta em bairro nobre de São Paulo.

Salete não conseguia acreditar.

–Como é que pode?

Tratava-se de um animal de estimação.

Mantido com carinho num apartamento em Perdizes.

–Como é que a cobra foi sair de lá?

O marido de Salete se chamava Beto.

–Liberdade, ué.

Eram fortes as convicções políticas do rapaz.

–O ser humano pode ficar sem oxigênio. Mas não sem liberdade.

Salete tentou discutir.

–Mas não é ser humano… é jiboia, Beto.

O pequeno empresário deu um sorriso de desprezo.

–E daí? Vocês não são ecologistas?

Salete estranhou.

–Vocês? Quem é que você está chamando de vocês?

–Ué. Você mesma, Salete. E seus amiguinhos da esquerda.

Aos 40 anos, Salete tinha começado a faculdade de Psicologia.

–Como você é atrasado, Beto.

–Ha. Podem falar. Mas quero ver me criticarem porque sou a favor da posse de armas.

De fato.

Aquele fabricante de camisetas esportivas já tinha adquirido um belo arsenal.

–Mato a cobra e mostro o fuzil.

–Ai, Beto. De novo…?

A tarde nublada ia cobrindo de tristeza as colinas de Perdizes.

–Salete.

–Hã?

–Você ainda gosta de mim?

–Que pergunta, Beto.

–Depois que você entrou na faculdade…

–O que é que tem?

–Só fica discutindo.

O bolsonarismo já não era um fator de união para o casal.

–Deixa eu dormir, Beto. Já está tarde.

Sonhos agitados percorreram a mente da estudante.

–Socorro. Socorro. A cobra. A cobra vai fumar.

–Hã?

O pesado abajur de cerâmica indígena já estava nas mãos de Salete.

–Toma. Toma.

Beto foi repetidamente atingido na região da virilha.

Demorou um pouco para Salete voltar ao normal.

–Ué. Até que a jiboia nem era tão grande assim…

Beto se recupera com pomada analgésica e compressas de gelo.

Salete aos poucos se reaproxima do marido.

–Essa cobra… muito exagero da imprensa, né, Beto?

–Hm.

–Ainda bem que eu não usei o seu 38…

–Rrmf.

–Essa coisa de ecologia é tão exagerada…

–É.

–Cobra, tubarão, piranha… Deus do céu.

–Tem o Lula também.

–Ah, não voto nele de jeito nenhum.

O casal já retomou uma rotina de entendimento e atividade amorosa.

–Você é que nem vacina, Beto… sempre repete a dose.

–Que nem o Bolsonaro… a caminho do segundo mandato.

​--Tomara, né, amor.

A vida conjugal tem suas atribulações.

Mas a mente humana é uma jiboia com muitas voltas.

Toma um pouco de ar fresco, e depois retorna para a toca.

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