Brutalidade. Violência. Degradação.
É a cracolândia.
Um vídeo chocante circula nas redes sociais.
Homem é espancado a pauladas durante a madrugada.
O sem-teto Férgusson frequentava o local.
–Esse tipo de acontecimentos está se tornando cada vez mais frequente.
Dívidas. Vinganças. Descontrole.
–Muitos atritos entre o traficante e o usuário.
A repórter televisiva Giuliana Bugiardi ia gravando a entrevista.
–Então é isso, né. E você como se sente, aí, nessa situação…?
Férgusson ficou em silêncio.
Giuliana teve a ideia.
–Olha. Fica com esse celular. Aí se acontecer alguma coisa você grava.
–Tem certeza, dona?
–Uma noite só, tá legal?
–Não vai fazer falta para a senhora?
–Tenho mais dois. E esse aí nem é da Apple.
Férgusson aceitou a oferta com humildade.
–Eu, virar repórter… quem diria.
Cuidado e discrição são importantes nesse caso.
–Vai que me roubam o celular.
Férgusson escondeu o aparelho no fundo da sacola.
–E se souberem que fui eu quem gravou…
Os dedos do pé se encolheram no chinelo.
–Acabam com a minha raça.
Fogueiras esparsas combatiam o frio pelos lados da avenida Rio Branco.
Férgusson estava encolhido quando o tumulto começou.
–Caramba. Um cara batendo em três.
Os músculos. A careca. O treino em artes marciais.
–Ele vai matar todo mundo…
O celular ia gravando a cena fielmente.
–É melhor eu avisar a polícia… sei lá.
O morador de rua ainda tinha confiança nos agentes da lei.
Três carros oficiais apareceram como por encanto.
–Ué. Será que é algum delegado?
Eram representantes do governo federal.
–Deputado. Deputado. Pode parar com o espancamento um momentinho?
O gigante careca interrompeu seu trabalho punitivo.
–O que é? Vieram para me encher o saco?
–Pelo contrário… a notícia é boa, deputado.
–Logo na hora que eu ia botar fogo nesses vagabundos…
–O senhor acaba de receber uma homenagem do Ministério da Cultura.
Comendas. Diplomas. Medalhas.
–Esperam o senhor na biblioteca.
–O jatinho está pronto?
–Perfeito, deputado.
–E o discurso?
–Não precisa fazer, não… ninguém faz questão disso.
Férgusson respirou aliviado.
–Melhor ele pôr fogo na biblioteca do que nos mendigos daqui de São Paulo.
A língua portuguesa unifica cidades e nações.
Mas certas ações, por vezes, falam mais alto.
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