Voltaire de Souza

Crônicas da vida louca

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Descrição de chapéu cracolândia

Fogo na mendigada

Quando o mundo das drogas produz cenas chocantes, a cultura pode trazer respostas

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Brutalidade. Violência. Degradação.

É a cracolândia.

Um vídeo chocante circula nas redes sociais.

Homem é espancado a pauladas durante a madrugada.

O sem-teto Férgusson​ frequentava o local.

–Esse tipo de acontecimentos está se tornando cada vez mais frequente.

Dívidas. Vinganças. Descontrole.

–Muitos atritos entre o traficante e o usuário.

A repórter televisiva Giuliana Bugiardi ia gravando a entrevista.

–Então é isso, né. E você como se sente, aí, nessa situação…?

Férgusson ficou em silêncio.

Giuliana teve a ideia.

–Olha. Fica com esse celular. Aí se acontecer alguma coisa você grava.

–Tem certeza, dona?

–Uma noite só, tá legal?

–Não vai fazer falta para a senhora?

–Tenho mais dois. E esse aí nem é da Apple.

Férgusson aceitou a oferta com humildade.

–Eu, virar repórter… quem diria.

Cuidado e discrição são importantes nesse caso.

–Vai que me roubam o celular.

Férgusson escondeu o aparelho no fundo da sacola.

–E se souberem que fui eu quem gravou…

Os dedos do pé se encolheram no chinelo.

–Acabam com a minha raça.

Fogueiras esparsas combatiam o frio pelos lados da avenida Rio Branco.

Férgusson estava encolhido quando o tumulto começou.

–Caramba. Um cara batendo em três.

Os músculos. A careca. O treino em artes marciais.

–Ele vai matar todo mundo…

O celular ia gravando a cena fielmente.

–É melhor eu avisar a polícia… sei lá.

O morador de rua ainda tinha confiança nos agentes da lei.

Três carros oficiais apareceram como por encanto.

–Ué. Será que é algum delegado?

Eram representantes do governo federal.

–Deputado. Deputado. Pode parar com o espancamento um momentinho?

O gigante careca interrompeu seu trabalho punitivo.

–O que é? Vieram para me encher o saco?

–Pelo contrário… a notícia é boa, deputado.

–Logo na hora que eu ia botar fogo nesses vagabundos…

–O senhor acaba de receber uma homenagem do Ministério da Cultura.

Comendas. Diplomas. Medalhas.

–Esperam o senhor na biblioteca.

–O jatinho está pronto?

–Perfeito, deputado.

–E o discurso?

–Não precisa fazer, não… ninguém faz questão disso.

Férgusson respirou aliviado.

–Melhor ele pôr fogo na biblioteca do que nos mendigos daqui de São Paulo.

A língua portuguesa unifica cidades e nações.

Mas certas ações, por vezes, falam mais alto.

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