Descobertas ajudam a repensar expansão do ser humano pelo mundo

Instrumentos indianos de 350 mil anos fazem evolução humana ser repensada

Instrumentos de pedra relativamente sofisticados, com cerca de 350 mil anos
Instrumentos de pedra relativamente sofisticados, com cerca de 350 mil anos - Kumar Akhilesh, Shanti Pappu/Sharma Centre for Heritage Education, India via Associated Press

 
REINALDO JOSÉ LOPES
São Paulo

Arqueólogos encontraram indícios do primeiro grande salto tecnológico da pré-história humana durante escavações no sul da Índia. Os instrumentos de pedra achados na região têm cerca de 350 mil anos, idade próxima à de ferramentas do mesmo estilo achadas no norte da África.

"Ainda não temos como saber quem eram os fabricantes desses artefatos, mas nossos achados desafiam modelos simplistas sobre a origem e a evolução dessa fase da pré-história", disse à Folha a arqueóloga Shanti Pappu, do Centro Sharma de Educação sobre o Patrimônio Histórico. Junto com colegas da Índia e da França, Pappu acaba de publicar um artigo descrevendo os resultados das escavações na revista científica "Nature".

A fase tecnológica em questão é o chamado Paleolítico Médio. Como o nome sugere, temporalmente ele fica entre o Paleolítico Inferior, que começa assim que os ancestrais da humanidade aprenderam a produzir instrumentos de pedra, há uns 3 milhões de anos, e o Paleolítico Superior, marcado pelo desabrochar da arte no fim da Era do Gelo, há uns 50 mil anos.

O Paleolítico Médio se destaca por métodos relativamente sofisticados e planejados de lidar com a matéria-prima dos instrumentos e por inovações como lanças com ponta de pedra (embora talvez também tenha sido possível produzir esse tipo de arma com artefatos de pedra mais toscos).

Para chegar a esses resultados, os ancestrais da humanidade frequentemente empregavam a técnica conhecida como Levallois (o nome francês vem de um subúrbio de Paris onde artefatos fabricados desse jeito foram encontrados no século 19). Para chegar ao instrumento, era preciso primeiro preparar um "núcleo" inicial de pedra, arrancando diversas lascas ao redor do que virá a ser o artefato. Um último golpe retira a lasca finalizada, já com as bordas cortantes (veja infográfico), embora as lascas obtidas anteriormente também possam ser usadas.

"Do ponto de vista técnico, é algo relativamente complexo. Eu mesmo apanhei um pouco para aprender", conta o arqueólogo brasileiro João Carlos Moreno de Sousa, doutorando do Museu Nacional da UFRJ que estuda tecnologias líticas (ou seja, envolvendo instrumentos de pedra) e que costuma produzir seus próprios artefatos usando diferentes matérias-primas para entender como os artesãos pré-históricos trabalhavam.

"É um salto tecnológico, na minha opinião, entre outras coisas porque é uma maneira de aproveitar ao máximo o bloco de rocha, desperdiçando o mínimo possível de material", diz Sousa.

QUEM FEZ?

A questão é saber, claro, como essa tecnologia surgiu e se disseminou pelo Velho Mundo. No sítio indiano de Attirampakkam, que fica perto da cidade de Chennai, as datações mais antigas são de 385 mil anos, com margem de erro de 64 mil anos para mais ou para menos.

"Nessas datas iniciais, temos alguns elementos de ferramentas arcaicas, junto com estratégias do tipo Levallois bastante complexas. Há sítios africanos com coisas similares um pouco mais antigas", diz Pappu.

A técnica Levallois acabou sendo usada durante dezenas de milhares de anos pelos neandertais, os primos extintos do Homo sapiens que viveram na Europa e no Oriente Médio durante a Era do Gelo. Mas eles também aparecem associados a formas mais arcaicas do Homo sapiens do norte da África e do Oriente Médio, o que leva alguns arqueólogos a defender que os neandertais teriam copiado a ideia de nossos ancestrais.

"As datas da Índia deixam claro que não foram os neandertais os responsáveis por desenvolver originalmente a técnica, já que os fósseis deles só aparecem na Europa depois de 300 mil anos atrás", diz Sousa. "Também há arqueólogos que falam em múltiplas origens independentes da tecnologia. A questão ainda está em aberto", afirma Pappu.

Outra possibilidade seria uma difusão relativamente rápida das tecnologias do Paleolítico Médio da África para a Eurásia, talvez por movimentos populacionais de formas mais arcaicas do Homo sapiens, talvez por contato com hominídeos mais antigos que já estavam por lá antes, como o Homo erectus.

Se já havia Homo sapiens na Ásia em épocas tão recuadas, a ideia de que ocorreu um único grande êxodo da espécie a partir da África por volta de 100 mil anos atrás perde força. É o que já indicava a descoberta de um maxilar de um membro da nossa espécie em Israel, fóssil que teria quase 200 mil anos, segundo pesquisadores da Universidade de Tel-Aviv.

Fósseis de ancestrais da humanidade são relativamente raros nos sítios indianos, porém, o que impede as tentativas de resolver esses enigmas por enquanto. "A gente tem de manter a mente aberta. Houve mais achados no norte da África e regiões vizinhas do Mediterrâneo por causa do esforço maior de pesquisa dos europeus na região. Nesse caminho entre o Mediterrâneo e a Índia, coisas mais antigas podem acabar aparecendo", diz Sousa.


Revisionismo pré-histórico

Nova "data de nascimento"?

Para muitos pesquisadores, os seres humanos com anatomia moderna (Homo sapiens) teriam surgido 200 mil anos atrás na África Oriental. Mas descobertas publicadas no ano passado sugerem a presença da espécie há mais de 300 mil anos no Marrocos

Crédito: Reuters Crânio reconstruído com base em fósseis encontrados
Crânio reconstruído com base em fósseis encontrados
 

Colonizando o Oriente Médio

A expansão do Homo sapiens para outros continentes, deixando a África para trás, costuma ser datada entre 100 mil e 60 mil anos atrás, mas um maxilar achado em Israel indicaria a presença de humanos modernos lá há quase 200 mil anos

Crédito: Rolf Quam/Universidade de Binghamton Maxilar e utensílio achados em Israel
Maxilar e utensílio achados em Israel
 

Índia: a fronteira final?

Um dos grandes mistérios nessa história é o que estava acontecendo na Índia e regiões vizinhas nos últimos 500 mil anos. Agora, instrumentos de pedra relativamente sofisticados, com cerca de 350 mil anos, foram achados perto de Chennai, no sul da Índia

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Esses artefatos foram produzidos com a chamada técnica Levallois, na qual um núcleo de pedra é preparado cuidadosamente e serve de fonte para uma lasca pequena

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Ninguém sabe com certeza como essa técnica relativamente sofisticada surgiu: alguns atribuem sua origem aos primeiros Homo sapiens, outros aos neandertais

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