Cientistas dissecam cobras-cegas e encontram realidade gosmenta 

Vida em túneis moldou evolução de anfíbios ainda pouco estudados

Gabriel Alves
São Paulo

As cecílias, também conhecidas como cobras-cegas, são anfíbios com a aparência não muito simpática de uma minhoca crescida. No entanto, ao observá-las em seu habitat natural e ao estudar de perto suas características fisiológicas, bioquímicas e ecológicas, cientistas acharam resultados fascinantes. Um estudo publicado nesta sexta (23) na revista “Scientific Reports” ajuda a entender como a evolução operou para dar ao bicho características únicas.

Alguns fatos sobre as cecílias: elas quase não têm olhos (o nome vem do radical caecus, que, em latim, significa "cego") --também pudera, já que vivem na maior parte do tempo no solo, dentro de túneis que elas mesmo escavam--  ;quando vão se reproduzir, a cloaca é extrovertida, assumindo o papel de pênis, e os filhotes do bicho são alimentados com a pele da mãe enquanto não atingem a maturidade.

São pouco mais de 200 espécies catalogadas, possivelmente os bichos menos estudados entre os anfíbios e o grupo menos numeroso do mundo. Para comparação, são conhecidas quase 7.000 espécies de sapos rãs, pererecas e salamandras.

Cobra-cega da espécie Siphonops annulatus
Cobra-cega da espécie Siphonops annulatus - Carlos Jared/Instituto Butantan

Uma equipe de cientistas do Instituto Butantan e um pesquisador da Universidade Estadual de Utah (EUA) resolveram investigar especificamente a cecília Siphonops annulatus e acabaram descobrindo um fato gosmento sobre os bichos. 

Ao olhar sob a pele das criaturas, os cientistas mapearam sua enorme coleção de glândulas, e constataram uma adaptação formidável do bicho ao estilo de vida fossório (de quem vive sob a terra). 

As glândulas mais próximas à cabeça secretam um material transparente e viscoso, que funciona como um lubrificante que permite que o bicho penetre com facilidade no solo e deslize dentro dos túneis. “Isso faz com que o animal se locomova rapidamente e de forma suave”, explica o biólogo Carlos Jared, do Butantan.

Ao longo da extensão do corpo há uma suave transição entre os tipos de glândulas. Quando se chega à extremidade oposta do bicho, predominam as de veneno. O líquido que sai dali é opaco, ralo, esbranquiçado e especialmente tóxico. Uma possível função dessa secreção, dizem os cientistas, seria a de atrasar ou agredir possíveis predadores que perseguissem a cecília dentro dos túneis.

A experiência humana com essas secreções não parece ser nada agradável. Os autores relatam terem sentido intensa irritação nos olhos e na mucosa (talvez por terem manuseado o bicho sem luva ou por algum acidente não explicado). 

Filhote de cecília  abocanha a pele da mãe em processo conhecido como dermatofagia materna
Filhote de cecília abocanha a pele da mãe em processo conhecido como dermatofagia materna - Instituto Butantan

Outra curiosidade: as cecílias apresentam um comportamento classificado como fragmose, que é basicamente tampar um túnel com uma parte do corpo --no caso com a porção terminal, rica em veneno.

(Outro exemplo de fragmose são pererecas que se enterram, deixando a cabeça espinhosa e venenosa para fora. Alguns predadores até tentam arrancá-las de lá, mas, com dor, logo desistem.)

Como o bicho apresenta o mesmo calibre ao longo de quase toda sua extensão, há uma oclusão do túnel quase perfeita realizada pelo “bumbum” ceciliano. E o predador que se aventurar em dar uma dentada vai engolir veneno na certa. 

“O veneno é altamente tóxico para vários animais, inclusive mamíferos”, diz Jared. As cecílias são muitas vezes predadas por serpentes fossórias, como as corais verdadeiras, explica o pesquisador.

“Esse estudo corrobora a hipótese de que a vida dentro dos túneis pautou a evolução e moldou o corpo das cecílias. As secreções fazem parte do mesmo pacote de adaptações que retirou-lhes as patas, que seriam verdadeiros estorvos, e os olhos, que também não teriam serventia na escuridão”, conclui Jared.


 

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